Folha de S.Paulo

Denise Fraga e a celebração do teatro

‘No palco, vimos uma festa de aniversári­o, um velório, pessoas chorando e sendo consoladas’

- A obra que marcou Denise Fraga Atriz, está em cartaz com “A Visita da Velha Senhora” no Teatro Sérgio Cardoso até 30/9

Em seu texto no programa, Geoff Sobelle dizia acreditar que as boas ideias não costumam vir da mesa do escritor, e sim do espaço e do grau de escuta das pessoas envolvidas. O que faz de uma casa um lar? —era a sua questão.

Eu e meu marido fomos ver “Home” por indicação de um amigo no festival de teatro do BAM (Brooklyn Academy of Music). Ao chegar, encontramo­s o próprio Geoff recebendo as pessoas na plateia. O clima era festivo, parecia uma noite de estreia. Não era. Estava ali só o público daquela noite, e ele nos recebia. O clima de que algo especial iria acontecer instaurava-se no ar com toda a força.

O espetáculo começou com Geoff agradecend­o a nossa presença e indo para o palco, onde começou a construir um biombo de plástico. Ficou um bom tempo ali esticando e grampeando o plástico numa estrutura de madeira. Comecei a ficar um pouco entediada com a demora, mas achei curioso como aquele homem confiou prender nossa atenção com uma atividade tão banal como aquela, logo no início do espetáculo.

Não era um bailarino com movimentos estudados, tampouco um ator. Era simplesmen­te um homem pregando um plástico numa estrutura de madeira. Lembrei como adorava ver meu tio misturando cimento com água para fazer pequenas reformas em casa e me deixei levar pela empreitada de Geoff. Fiquei lá, torcendo por seu biombo de plástico.

Quando ficou pronto, algo começou a acontecer. Entraram mais atores, mais paredes, uma cama, alguém que deitava, tentava dormir, viravase insone e levantava. Tudo parecia caminhar para uma coreografi­a co- tidiana de teatro físico, bonita, bem elaborada, mas que eu já tinha visto parecida em outros espetáculo­s. Me contentei com o que iria ver: boa música, bons atores-bailarinos, uma cama, mesas e cadeiras. Não precisa de muito para bom teatro.

Mas a coisa cresceu, sem pressa e confiante. Em meio a movimentos cotidianos como escovar os dentes ou tirar alguma coisa do forno, foise construind­o uma casa de dois andares diante dos nossos olhos.

Quando percebi, havia alguma coisa sendo batida num liquidific­ador, alguém fazendo a barba, frutas sendo trazidas do mercado. Gente cozinhando, um pai brigando com uma criança, uma moça fazendo curativo na testa de um rapaz. Alguém tomando um banho de chuveiro enquanto outro chorava no quarto.

Movimentos vivos e sincroniza­dos, banhados por uma música potente formando uma arrepiante sinfonia da vida real. Já era lindo.

De repente, o menino vai para a plateia, pega uma senhora pela mão, leva-a para o palco, senta com ela na mesa e começa a chorar. Ela ri um pouco, o abraça, não sabe muito bem o que fazer a espectador­a no palco.

A partir daí, as cenas continuam com pessoas da plateia sendo incluídas a todo momento para enfrentar inusitadas situações cotidianas. Uma briga, a falta de um prato na mesa, uma festa surpresa.

Quem entrava sorria um pouco, estranhava, mas, logo depois de algumas palavras ditas em seu ouvido, ia entrando no jogo e pertencend­o àquela casa, doando-se vivo para o fazer teatral, abrindo-se para os pedaços de vida ali propostos, em que todos se reconhecia­m em beleza. Um festival de gente, diferenças e muito respeito.

Foram dezenas de pessoas tiradas da plateia, e minha ligeira desconfian­ça de que tudo poderia ter sido combinado antes caiu totalmente por terra. Víamos a surpresa do espectador, o constrangi­mento e, a partir do sopro no ouvido, um novo ator da vida se formando.

Vimos uma festa de aniversári­o, um velório, pessoas chorando e sendo consoladas por bombeiros, que minutos atrás estavam sentados do meu lado sem capacete. Fomos convidados a esticar um enorme fio de luzinhas passando-o de mão em mão pela plateia. Iluminamos todo o teatro e, ao final, uma incrível banda de metais veio descendo pelo corredor, transforma­ndo tudo num grande baile que parecia celebrar nossa capacidade de agir juntos.

As instruções ditas ao pé do ouvido aqui e ali pareciam mesmo muito poderosas, mas o grau de vontade e escuta dos participan­tes daquela noite fizeram a mágica. Fizeram daquela casa um lar. Daquele teatro, vida e alegria.

Sinto que o evento teatral será cada vez mais precioso por se tratar de um ritual de presença. Em tempos tão virtuais, com a nossa atenção sendo estilhaçad­a a todo momento, o teatro convida para um compromiss­o de mergulho coletivo numa história, numa reflexão. Na abertura para um impacto qualquer que todos absorverão e que deixarão, cada um a seu modo, transforma­r suas vidas, simplesmen­te porque ali estiveram plenos e juntos, num pacto de silêncio, de olhos e ouvidos, deixando-se levar.

O espetáculo de Geoff Sobelle leva essa ideia de presença às últimas consequênc­ias e nos mostra o alcance de possibilid­ades que esse poderoso ritual de reflexão chamado teatro pode alcançar.

 ?? Sara Krulwich/The New York Times ?? Cena do espetáculo ‘Home’, de Geoff Sobelle, apresentad­o em Nova York em 2017
Sara Krulwich/The New York Times Cena do espetáculo ‘Home’, de Geoff Sobelle, apresentad­o em Nova York em 2017

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