Folha de S.Paulo

Um episódio de muito movimento

- Por Emilio Fraia Escritor, autor do romance “O Verão do Chibo”, em parceria com Vanessa Barbara (Alfaguara, 2008), e da graphic novel “Campo em Branco” (Companhia das Letras, 2013, com DW Ribatski) Ilustração Antonio Dias Artista plástico paraibano (1944-

Uma manhã, enquanto comíamos, eu disse a Klaus que não entendia muito bem a razão de ele estar escrevendo um texto sobre aquele personagem. Você gosta das pinturas desse cara, eu disse, algo nelas te emociona, ok, mas é apenas uma história esquisita em que não acontece nada.

Pela rua passavam carros sem parar. Klaus limpou com um guardanapo o bigode sujo de leite e falou que todas as histórias no fundo eram histórias esquisitas em que não acontece nada. Nós somos o passado, ele disse. Eu falei que não, nós somos o futuro. Ele riu daquilo. Pedi para ele me explicar a graça. Ele disse que não, não me explicaria coisa nenhuma. Além disso, não era verdade que naquela história não acontecia nada. Ele estava exatamente naquele momento trabalhand­o num episódio de muito movimento.

Um episódio de muito movimento, repeti.

Sim, ele falou, um episódio de muito movimento. Um episódio de muito movimento na vida de Bogdan Trúnov.

Klaus e eu tínhamos bebido na noite anterior e tentávamos não morrer. Minha cabeça ia explodir. Era uma manhã fria e sonolenta. Estávamos numa parte protegida do bar, onde a corrente de ar não nos alcançava. Ele usava um cachecol com uns alces marrons, que combinavam com a cor do seu bigode. Eu comia meu pão, olhava para Klaus e pensava que se havia uma coisa esquisita ali, essa coisa era a minha vida.

Meus pais moravam no interior e quando me ligavam eu dizia que as coisas iam bem, o emprego, a faculdade. Contava coisas banais, como quando o micro-ondas quebrou e eu precisei levá-lo no conserto. Inventava que já tinha conhecido outro carinha, que era muito inteligent­e e tinha um emprego. Na verdade, eu queria poder dizer ao meu pai que eu havia tomado um pé na bunda horroroso, que havia largado tudo e que estava escrevendo uma peça, que estava trabalhand­o com um diretor famoso, quero dizer, eles não fariam a menor ideia, claro, mas eu explicaria que Klaus era um diretor famoso, um gênio visionário. Eu esperava o momento certo de dizer isso. Muitas vezes estive a ponto de dizer. Mas os meses foram passando e eu não dizia nada. Quando aquilo acabasse, no entanto, quando a peça estreasse, eu me vingaria, eles me dariam razão e me perdoariam por tudo. Pedi um chá de hortelã, eu tinha bebido demais, minha cabeça parecia descolada do corpo.

Klaus passou então a me contar sobre o episódio de muito movimento que, óbvio, estava longe de ser um episódio movimentad­o de verdade, porque o que Klaus gostava nas coisas era de tudo, menos de movimento. Ele gostava do que chamava de tempos longos, de chuva, de molhar as bolachas no leite, e era um negócio péssimo aquele bigode cheio de leite, e, claro, ele gostava de gente maluca e perdida.

Nas histórias de terror, personagen­s misterioso­s aparecem subitament­e, Klaus me disse um dia, vestindo roupas de outro século, como se tivessem dormido durante anos e acordado de repente, como se tivessem dormido durante anos ou pela eternidade, o que dá na mesma, e então acordam e batem à nossa porta, famintos por sangue.

Era exatamente o que acontecia na nossa história, de acordo com Klaus. Uma manhã, um homem batia à porta de Trúnov. Não era noite, mas perto do meio-dia, o que no fim eu achava bom, nada clichê, o fato de a coisa toda acontecer em plena luz, na hora mais clara do dia.

Sob o arco da porta, o homem aguardava. Era um soldado. Tinha a cara empoeirada e não mais do que trinta anos. O que era inesquecív­el nele, Klaus dizia, como se não tivesse inventado aquilo de repente, eram os cabelos brancos, que contrastav­am com o rosto muito jovem, a cara magra e ruiva, a cabeça cansada. Ele trazia um lenço amarrado no pulso esquerdo, usava uma calça escura, remendada nos joelhos. O casaco pobre e antigo, enfeitado com uma insígnia, dava a impressão de ser o melhor que tinha. Seria um homem bonito até, dizia, não fosse um ar geral de cansaço, com rugas de expressão que se entrelaçav­am e reforçavam os traços. É o senhor Trúnov, o pintor?, ele perguntava.

De pé, a meio caminho entre a porta e a chaleira no fogo, Trúnov observava aquele soldado, atrás de uma cortina de poeira, iluminado pela luz do sol fraco. Convidava-o a entrar. Eu tenho um pedido, dizia o soldado, gostaria de ver o senhor por causa de um quadro, gostaria que o senhor me retratasse num de seus quadros. Trúnov deu uns passos para trás, chegou mais perto do fogo e assim permaneceu por um tempo, olhando o fogo, olhando aquele homem. Ficou esquentand­o as mãos. Tomou um gole de água numa cumbuca lustrosa. Enxugou os lábios nas mangas do agasalho de aniagem escura (esse era um detalhe que eu havia pesquisado e que Klaus agora usava e que, na minha modesta opinião, dava toda a graça da cena). O olhar do soldado flutuava pelo castiçal de prata sobre a mesa, o relógio na parede com a imagem do tsar Pedro 1º (eu novamente), as achas de lenha, e voltava a pousar em Trúnov, aguardando uma resposta, que parecia demorar um pouco demais, e eu achava que teríamos que corrigir isso depois.

Trúnov dizia então que sim, que poderia pintá-lo. Agradecia a visita e o interesse do homem. Dizia que costumava fazer quadros do tipo e que sem dúvida poderia pintá-lo, embora aquilo fosse novo, não era comum que viessem até ele, ele é quem normalment­e saía em busca de homens e mulheres dispostos a posar.

Depois de um breve silêncio e percebendo que o soldado não falaria mais nada, Trúnov perguntou como ele gostaria de ser retratado.

Nessa hora, Klaus falou que tinha imaginado um jogo de luzes complexo e perfeitame­nte uniforme, queria que a hesitação entre a pergunta de Trúnov e a resposta do soldado se destacasse, como se fosse algo sólido, pesado, algo que pudéssemos sentir. O soldado ficaria em silêncio, olharia fixamente para Trúnov e diria: no meio da batalha. No meio dos outros oficiais. Gostaria que fosse numa trincheira ou sobre o cavalo carregando uma bandeira. Com a esquadra inimiga ao longe, as baterias brancas da costa, quartéis, aquedutos, nuvens de fumaça, o vento no rosto. No horizonte, os fogos da tropa inimiga.

A consciênci­a da solidão no perigo, falou Klaus. É o tipo de sentimento que devemos trabalhar. Você está anotando?

Klaus enfiou na boca um pedaço de pão, tomou um gole de leite.

Eu perguntei se no fim Trúnov aceitaria fazer o quadro.

Sim, claro, respondeu Klaus. Este é o acontecime­nto que vai levar nossa história adiante, falou, abaixando a cabeça, com um olhar triste. Mas Trúnov não iria com o soldado para o meio do campo de batalha, continuou. Faria diferente. A cena seria montada no pátio de uma oficina. Civis e soldados seriam convocados, com armas, com suas melhores roupas. Enfileirar­iam cavalos. A cena seria montada em detalhes.

No palco, nesse momento, vamos fazer o soldado surgir sob uma luz diferente. Suave e limpa. Essa é uma coisa importante, Nadia, vamos fazer assim, exatamente assim.

 ??  ?? [SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “Sebastopol”, terceiro livro do autor, que entrelaça três histórias distintas repletas de relações sutis. A obra sai pela Alfaguara em outubro.
[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “Sebastopol”, terceiro livro do autor, que entrelaça três histórias distintas repletas de relações sutis. A obra sai pela Alfaguara em outubro.

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