Folha de S.Paulo

Padre que atuou em GO é acusado de abuso sexual

Segundo grupo, Igreja demora para chegar a desfecho de caso que envolve sexo forçado e lavagem cerebral

- Anna Virginia Balloussie­r

Ao menos 11 mulheres relataram episódios de abusos sexuais atribuídos ao padre Jean Rogers Rodrigo de Sousa, que atuou em Anápolis (GO), informa Anna Virginia Balloussie­r.

Ele diz que é alvo de calúnias e enfrenta oposição devido a posições políticas conservado­ras.

“Ele já veio com uma força muito grande, me jogando no sofá e levantando meu hábito. Não tive coragem de gritar Rita ex-freira

anápolis (go) As primeiras denúncias começaram em 2006. Só se falava, então, em “lavagem cerebral” numa comunidade católica na goiana Anápolis, a Arca de Maria.

Com o tempo vieram as acusações de abuso sexual contra Jean Rogers Rodrigo de Sousa, 44, conhecido como padre Rodrigo Maria. Algumas freiras (as “irmãs”) que estiveram sob sua guarda narram investidas sexuais contra a vontade delas. Alguns atos foram consumados, outros não, dizem.

O assédio seria também virtual: num dos casos, Rodrigo teria começado a se masturbar numa conversa via Skype.

Ao menos 11 mulheres relataram à Igreja Católica episódios de abuso em várias cidades, o que motivou a abertura de processos canônicos contra o clérigo. Mas a falta de um desfecho para o caso, 12 anos após a primeira queixa contra a Arca de Maria chegar ao conhecimen­to do Vaticano, leva o grupo a se perguntar por que tanta demora para punir um padre que, para todos os efeitos, ainda está livre para cooptar outras jovens.

A justiça eclesiásti­ca prevê, como punição mais grave, demissão do estado clerical (o condenado não exerce mais o sacerdócio) e excomunhão.

Para Flavia Piovesan, professora da PUC especialis­ta em direitos humanos, a Igreja deve notificar um possível crime à Justiça comum quando o que está em jogo é “o combate à impunidade desta gra- ve violação”. “De acordo com a Constituiç­ão, nenhuma lesão a direito [da vítima] pode ser afastada da apreciação do Judiciário.”

Padre Rodrigo pulou de diocese em diocese e hoje responde ao bispado de Ciudad del Este, no Paraguai. É lá que estão concentrad­os processos contra o réu, ainda que os eventos tenham se passado em outras cidades.

Em fevereiro, o monsenhor do bispado paraguaio, Guillermo Steckling, emitiu decreto determinan­do que, enquanto estiver sub judice, o brasileiro “não exerça o ministério sacerdotal nem vista o hábito clerical”. Rodrigo, que se diz inocente, vêm descumprin­do ambas as ordens.

O padre Fabio Recalde Barúa, porta-voz da diocese paraguaia, confirmou à Folha que o padre está sendo julgado por “desobediên­cia” e “numerosas e graves infrações de leis divinas e canônicas”.

A Folha conversou com três ex-freiras da fundação de Rodrigo, duas delas que se dizem vítimas dele, e teve acesso a uma série de documentos sobre o caso. Todas as mulheres citadas nesta reportagem têm seus nomes trocados a pedido.

Um dos motivos pelo qual, dizem, não recorreram à Justiça comum: o medo de serem identifica­das, pois as famílias muitas vezes não têm ideia do que aconteceu com as filhas.

Com Renata foi assim: “O padre chamou [as freiras] para conversar. Uma a uma. Cheguei, ele fechou a porta. Parecia que não estava em si, já veio com uma força muito grande, me jogando no sofá e levantando meu hábito. Não tive coragem de gritar. Tudo em cinco minutos que pareceram uma eternidade”.

Ele dizia que ia mudar, mas ela desconfiou que isso não aconteceri­a quando viu, no computador do padre, vídeos de sexo com animais, “de leão a macaco”, e e-mails de meninas de fora da Igreja que “mandavam fotos de calcinha e sutiã”. Rodrigo lhe dizia que era normal: “Excluo sempre”.

Os episódios que narra se passaram entre 2014 e 2015. Certa vez, segundo Renata, os dois se falavam pela internet. “Aí ele baixou [a roupa] e se masturbou, e nisso eu imediatame­nte desliguei o Skype.” Antes, porém, tirou um print da conversa —a imagem foi anexada aos autos canônicos.

A Folha escutou um áudio de 2015 em que o padre é confrontad­o por parentes de uma ex-freira sobre relações que teria mantido com jovens sob sua tutela e sobre uma “foto mostrando o pinto” no Skype. Ele admite “atos indecentes” e contatos online em que “acabei falando coisas indecentes”.

Na conversa, afirma que há meninas que se apaixonam por ele e culpa a “força mais destrutiva do universo, a FMD”, por falhas que lhe são atribuídas. A sigla quer dizer “fúria da mulher desprezada”, ele explica.

À Folha Rodrigo diz que jamais se relacionou, de forma consentida ou não, com freiras e que não há “áudio algum em que fale isso, a interpreta­ção fica por sua conta”.

Peritos ouvidos pela Folha atestam que a voz do áudio e a de um vídeo do clérigo no YouTube são a mesma.

Renata conta que, assim que expôs a convivas da casa religiosa o que lhe passou, Rodrigo “falou que eu estava ficando doida e que não era para que as outras confiassem em nada do que eu falasse”.

“Cheguei à depressão gravíssima, ao ponto de querer acabar com minha vida. Abri mão de tudo para ser noviça e chegar ao céu e estava vivendo o inferno lá dentro”, diz.

Rita, outra freira, afirma ter sofrido o mesmo “terrorismo psicológic­o” com Rodrigo.

À sua história: em 2012, aos 18 anos, ela se juntou à Arca de Maria. “Ele nos levava para uma chácara com paintball e tirolesa. Pra gente, era um santo em vida. Se as irmãs mais velhas falassem tipo ‘não deixa ele te abraçar’, batíamos de frente.”

E não parava no abraço, segundo ela. “Chamava a gente de bebezinho, apertava as bochechas, dava beijinho no rosto. Víamos como amor paterno”, diz.

Rita o seguiu quando ele foi afastado da presidênci­a da instituiçã­o que fundou em 2003. A Folha confirmou na Comarca de Anápolis um procedimen­to administra­tivo oficializa­ndo sua saída da Arca em 2014 e destacando que o bispo João Wilk lhe destituiu da função clerical no âmbito de sua diocese, a de Anápolis.

Naquele ano, Rodrigo criou uma segunda instituiçã­o, a Opus Cordis Mariae, e freiras como Rita se mantiveram fiéis a ele. Certo dia, o clérigo levou ela e outra irmã para “um retiro” em Minas. Cozinharam cuscuz com carne (que Rita salgou demais) antes de ele pedir que as jovens o acompanhas­sem até o quarto, diz.

Estava tarde, não queria que elas pegassem a estrada de terra uma hora daquelas, teria alegado. Os três na cama, Rita tensa. Primeiro eram abraços, depois “movimentos mais sexualizad­os”.

Ao virarem noviças, as garotas raspavam o cabelo e usavam lenço. O padre teria arrancado o dela e tascado um beijo “daqueles que um namorado dá” na orelha, diz Rita.

Ela fingiu que estava com sono e virou-se para o lado. A outra irmã, diz, não teve a mesma sorte. Não teve coragem de perguntar o que passou na cama (ouviu barulhos), “mas de manhã, na missa, ela não comungou”.

O que se seguiu, segundo Rita: lacrimejan­do, Rodrigo pediu perdão. Depois começou a espalhar para o resto do grupo que “ela estava com a síndrome das irmãs da Arca”, com invencioni­ces.

Um dos documentos aos quais a Folha teve acesso, de 2006, é um fax enviado pela mãe de uma vítima ao cardeal Lorenzo Baldisseri, à época núncio apostólico (equivalent­e a embaixador) no Brasil.

Ela escreveu que padre Rodrigo seria “adepto de práticas pouco aceitas hoje tanto pela Igreja quanto pela sociedade”, como o “uso de grossas correntes com cadeados em várias partes do corpo”, uma forma de autoflagel­ação.

Ela narra uma espécie de lavagem cerebral sobre as jovens recrutadas, que passariam a rejeitar a família, inclusive com agressões verbais. Castigos que o clérigo julgasse necessário­s —vamos supor que à noviça sobrasse rebeldia e faltasse humildade— envolveria­m dieta a pão e água.

Rita afirma que “não vê tanta vontade de resolver”, por parte da Igreja, o caso de Rodrigo, dado o passar dos anos e a ausência de um epílogo.

O Vaticano chegou a enviar a Goiás um “visitador apostólico”, o frei Evaldo Xavier Gomes, consultor jurídico da CNBB (Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil).

Gomes disse à Folha que “concluiu seu serviço em 2015”, mas não quis especifica­r o parecer que deu após investigar casas “das Irmãs Escravas do Divino Amor, vulgarment­e conhecidas como Arca de Maria”.

Padre Juvêncio, de Anápolis, diz que Rodrigo, que foi seminarist­a na cidade, nunca foi bom em receber ordens. “‘Rapaz, não faz isso’, tentava aconselhar.” E nada. Afirmou desconhece­r detalhes dos processos de abuso que pairam sobre o padre.

O padre Fabio, de Ciudad del Este, diz que “o delicado das acusações” impossibil­ita uma conclusão mais veloz do caso.

“Há que se garantir o direito de defesa”, afirma. E é preciso considerar, por exemplo, empecilhos físicos (há testemunha­s em Portugal, Espanha e Brasil) e o fato de o réu, “que viaja com frequência”, estar fora da diocese para receber notificaçõ­es, diz ele.

Não tenho dificuldad­es para admitir fraquezas, pois sou humano, mas em nenhum momento vai me ver dizendo que mantive relações com quem quer que seja

Padre Rodrigo Maria Nenhuma lesão a direito pode ser afastada da apreciação judicial. O direito canônico não pode afastar a proteção judicial Flavia Piovesan jurista

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Reprodução de vídeo do padre Rodrigo Maria no YouTube
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