Folha de S.Paulo

Consensos em trânsito

É melhor a classe política ‘jair’ pensando com cuidado sobre igualdade de gênero

- Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundation­s. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueS­ãoElas

Ser feminista no Brasil de 2018 significa se acostumar com estatístic­as trágicas e repeti-las à exaustão na tentativa de mobilizar o país. Um estupro é notificado a cada 11 minutos. Doze mulheres são assassinad­as diariament­e no país. Cresce o índice de homicídios de mulheres negras. Oitenta e oito por cento das prefeitura­s são comandadas por prefeitos homens. O Brasil é o país latinoamer­icano com menor representa­tividade feminina no Legislativ­o. As feministas brasileira­s vivem mergulhada­s em números tristes.

Nos habituamos às más notícias. Dados positivos são raros e devem ser saudados. Por isso iniciamos a semana festejando os resultados da pesquisa Ibope/ONU Mulheres divulgada no final da semana passada.

A pesquisa foi divulgada para lançar a plataforma digital Brasil 50-50 da ONU Mulheres, desenhada para incentivar o compromiss­o público de candidatos e candidatas com os direitos das mulheres. Os resultados são muito interessan­tes. Três dados nos chamaram a atenção.

O primeiro: 76% das entrevista­das e entrevista­dos declararam considerar extremamen­te importante que o governo federal promova o ensino de direitos humanos e direito das mulheres. Entre as mulheres, o percentual sobe para 80%. Alô, defensores de noções tacanhas como “escola sem partido” ou “ideologia de gênero”. O Brasil quer, sim, falar de igualdade e direitos em sala de aula.

O segundo: 46% das pessoas entrevista­das concordam totalmente com a frase “Só há democracia de fato com a presença de mulheres nos espaços de poder e de tomada de decisão”, e 25% dizem concordar em parte com a afirmação.

DS T Q Q S S Antonio Prata | Juliana de Albuquerqu­e, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos | Vera Iaconelli | Ilona Szabó, Jairo Marques | Sérgio Rodrigues | Tati Bernardi | Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Fº

Desde o início do processo que culminou na tomada de posse do presidente Michel Temer (MDB), o Brasil se divide entre os que acham que vivemos um golpe e os que entendem que vivemos um processo legítimo de impeachmen­t. Esse dado encerra o debate. Golpe ou não, não teremos uma democracia de fato enquanto não tivermos representa­tividade.

O terceiro é um conjunto de boas novas: 81% dos brasileira­s e brasileiro­s entendem que a presença de mulheres na política e em outros espaços de poder e decisão aprimora a política em si e os demais espaços. Para 78%, o governo federal deve considerar extremamen­te importante a promoção de políticas públicas que incentivem que homens e mulheres tenham as mesmas oportunida­des de acesso e desenvolvi­mento na educação e na cultura. São 81% os que consideram extremamen­te importante que o Executivo federal estimule o acesso de mulheres e homens às mesmas oportunida­des de trabalho e mesmos salários. E 72% consideram extremamen­te importante que o governo federal promova políticas visando assegurar oportunida­des iguais de atuação em partidos políticos e governos para mulheres e homens.

Esses números atestam a centralida­de que o Brasil confere hoje à demanda por igualdade de gênero. Além disso, mostram que há grande expectativ­a de que o governo federal tenha essa agenda como prioridade. Portanto, não é de se estranhar que um dos muitos grupos criados no Facebook para reunir mulheres que rejeitam a candidatur­a de Jair Bolsonaro à Presidênci­a do Brasil conte, no momento em que escrevemos, com mais de 2,5 milhões de integrante­s. É também previsível que essa articulaçã­o incomode os que apoiam o candidato e que esse grupo tenha sido hackeado na noite de sábado (15). Estamos falando e o Brasil parece estar nos ouvindo. Os consensos estão em trânsito. Quem desdenha da pauta da igualdade de gênero ou se opõe a ela pode ter um fim de ano bem azedo.

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