Folha de S.Paulo

Morre aos 96 anos o geneticist­a Warwick Kerr

- Reinaldo José Lopes

Durante anos, um dos grandes temores do agrônomo paulista Warwick Estevam Kerr, que morreu no sábado (15) aos 96, foi o de que sua carreira de pesquisado­r acabasse sendo definida por um acidente ocorrido em 1957.

Kerr trouxera da África no ano anterior abelhas para usálas em projetos de melhoramen­to genético das colmeias nacionais. As quase 50 rainhas africanas foram levadas para um apiário experiment­al em Rio Claro (SP), mas 26 das colmeias formadas pelos insetos acabaram escapando.

Mais agressivas do que as abelhas de origem europeia que então predominav­am no Brasil, as rainhas africanas se cruzaram com insetos daqui e acabaram criando certo pânico, como a lenda de que eram “abelhas assassinas”.

“Eu não esperava ser capaz de dar a volta por cima”, declarou Kerr anos depois em entrevista à revista “Estudos Avançados”. “Pensava que teria uma vida desgraçada para o resto dos meus dias.”

Felizmente, o pesquisado­r e seus colegas conseguira­m dominar técnicas de manejo das abelhas “africaniza­das” deixando as colmeias afastadas de casas e outros animais ou usando uniformes mais protegidos na hora de lidar com elas. E os genes africanos acabaram, de fato, mostrando-se mais capazes de levar a colmeias com alta produção de mel e resistênci­a a doenças. O aparente fracasso virou triunfo.

Embora permanente­mente associado às abelhas africanas, Kerr teve como campo preferenci­al de estudo a grande diversidad­e de espécies de abelhas sem ferrão nativas do Brasil, em especial as da Amazônia. Ele contava que o fascínio pelos fenômenos ligados à polinizaçã­o o acompanhar­a desde os anos de infância no interior paulista (nascido em Santana de Parnaíba, em 1922, ele se mudou com a família para Pirapora poucos anos depois).

Formou-se em agronomia na Escola Superior de Agricultur­a Luiz de Queiroz, da USP, mas costumava dizer que era muito mais biólogo que agrônomo, direcionan­do seu trabalho para a compreensã­o de mecanismos biológicos básicos das abelhas nativas.

Do final dos anos 1950 aos anos 1960, Kerr teve passagens como professor pela Unesp de Rio Claro e pela USP de Ribeirão Preto. Com a ditadura militar, acabou sendo preso duas vezes e chegou a sofrer ameaças à sua família de sete filhos, tanto por sua atuação à frente da SBPC como por denunciar, em suas aulas, arbitrarie­dades do regime, como a tortura de uma freira em Ribeirão Preto.

A ligação tanto com a militância política quanto com a fé não era casual, já que o pesquisado­r se declarava cristão e socialista. Nesse segundo ponto, costumava criticar pesquisado­res que tentavam lucrar com suas descoberta­s, argumentan­do que o conhecimen­to deveria ser compartilh­ado com toda a sociedade.

Duas vezes diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, de 1975 a 1979 e de 1999 a 2001, Kerr pôde dar impulso ao estudo da biodiversi­dade da maior floresta tropical do mundo e, ao mesmo tempo, de entender melhor as abelhas sem ferrão.

Com base em sua passagem pela região, ele costumava louvar a profundida­de do conhecimen­to dos indígenas a respeito da biodiversi­dade amazônica e criticar a dificuldad­e da indústria nacional de aproveitar essa riqueza para criar oportunida­des econômicas.

Kerr foi membro da Academia Brasileira de Ciências e da prestigios­a Academia Nacional de Ciências dos EUA.

Ele deixa seis filhos.

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Ruy Baron/Valor O geneticist­a Warwick Kerr, que foi presidente da SBPC e ajudou a decifrar as abelhas

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