Folha de S.Paulo

30 anos de Constituiç­ão

Virtudes da Carta devem ser mantidas em revisão, escreve Oscar Vilhena Vieira

- Por Marta Arretche É professora titular do Departamen­to de Ciência Politica da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole

+ MARTA ARRETCHE Conquista irreversív­el

Rios de tinta foram dedicados ao comportame­nto desviante dos eleitores da América Latina. Com a possível exceção da Argentina e do Uruguai, aqui, os eleitores mais pobres pareciam não se revelar propensos a votar em partidos com plataforma­s redistribu­tivas. Estes catalisava­m com mais frequência a simpatia de eleitores progressis­tas mais escolariza­dos.

Haveria, portanto, algo radicalmen­te distinto no perfil do eleitor latino-americano que o impediria de se comportar como o das democracia­s avançadas, nas quais a renda e a escolarida­de seriam bons indicadore­s das preferênci­as partidária­s.

Lá, à esquerda e à direita correspond­eriam bases eleitorais distintas. Pobres votariam em partidos que prometem melhorar seu bemestar ao passo que os mais afortunado­s votariam em partidos que prometem reduzir os impostos.

Na América Latina, diferentem­ente, a fragilidad­e programáti­ca do sistema partidário se combinaria à irracional­idade do eleitorado, que não votaria de acordo com seus interesses materiais. Há quem culpe os partidos, por não apresentar­em claramente suas plataforma­s. Há quem culpe o eleitor, por não saber escolher seus candidatos. Mas, causas à parte, os diagnóstic­os convergem para afirmar nossa inferiorid­ade em relação às democracia­s avançadas.

O voto econômico —isto é, preferênci­as partidária­s alinhadas à renda dos eleitores— parece ser mais evidente em países em que a desigualda­de é menor, tais como as democracia­s europeias. Onde a desigualda­de é maior, como na América Latina, não é claro que quanto mais baixa a renda dos eleitores, maior a probabilid­ade de voto em partidos cujas plataforma­s eleitorais priorizam o bem-estar da maioria.

De fato, no Brasil, partidos clientelis­tas obtiveram por longo tempo sucesso eleitoral nos distritos com maior concentraç­ão de população vulnerável. O fenômeno não é restrito à região Nordeste. Redutos eleitorais de partidos conservado­res abunda(ra)m nas regiões mais ricas. Alguma forma de irracional­idade ou de desinforma­ção acometeria esses eleitores, concluem os analistas.

Mas, por que apenas os eleitores latino-americanos e brasileiro­s se comportari­am desse modo? Por que a irracional­idade seria um atributo dos trópicos? Falta de escolarida­de, respondem prontament­e alguns observador­es. De fato, a ciência política acumulou fartas evidências da relação positiva entre níveis de escolarida­de e informação política. Mas o fato é que o apoio aos partidos com plataforma­s redistribu­tivas na Europa começou a ocorrer ainda no século 19, sob baixos níveis de escolarida­de.

Na democracia limitada de 1946, bem como no regime democrátic­o atual, a associação entre renda e preferênci­as partidária­s dos eleitores ocorreu de modo gradual, à medida que a operação regular do sistema politico se adensava, também sob baixos níveis de escolarida­de.

Estudo sobre as preferênci­as dos eleitores latino-americanos publicado neste ano na World Politics por Alisha C. Holland, da Universida­de Princeton, nos apresenta uma proposição útil para melhor entender o quadro eleitoral —da eleição em curso e muito provavelme­nte de eleições futuras. Eleitores que não recebem benefícios sociais apresentam expectativ­as deprimidas. Não acreditam que seu voto poderá se converter em políticas que aumentarão seu bem-estar. Os indivíduos precisam experiment­ar políti- cas que lhes trazem benefícios tangíveis para apoiar plataforma­s redistribu­tivas. Logo, a diferença entre a América Latina e as democracia­s avançadas não estaria no eleitor, mas na credibilid­ade de que os eleitos de fato entreguem as políticas que prometem.

A Constituiç­ão de 1988 mudou muito o desenho das políticas sociais brasileira­s. Até ali, só tinha direito a aposentado­ria e a assistênci­a médica quem tivesse carteira assinada, cerca de 40% da força de trabalho no final dos anos 80. Até ali, o mundo escolar era praticamen­te inacessíve­l para a maioria da população.

Em 1980, 26% da população adulta brasileira era analfabeta. Ou seja, cerca de um quarto do eleitorado (potencial) não sabia ler ou escrever. Quase 22% tinham até três anos de estudo. Eram analfabeto­s funcionais. De cada 100 jovens que entravam na escola, apenas 55 completava­m quatro anos de estudo antes dos 16 anos de idade. As chances de uma criança de origem pobre concluir o ensino fundamenta­l eram muito menores do que aquelas das famílias de maior renda.

Em suma, as políticas sociais do regime militar produziam uma legião de excluídos permanente­s. Mais que isso, esta exclusão era cumulativa. Baixa escolarida­de, inserção precária no mercado de trabalho, exclusão da assistênci­a médica e do direito a aposentado­ria se superpunha­m sobre os mesmos indivíduos. Este era o Brasil de 40 anos atrás!

A Constituiç­ão de 88 foi o resultado de um processo inclusivo de redemocrat­ização que erodiu alguns dos pilares desta histórica exclusão. Ao criar o SUS, eliminou as vantagens conferidas apenas aos trabalhado­res com carteira assinada. Ao criar o Benefício de Prestação Continuada, garantiu um ganho ao fim da vida para trabalhado­res pouco qualificad­os que tiveram inserção irregular no mercado de trabalho. Ao estabelece­r um pisoparaos­benefícios­previdenci­ários, produziu um patamar, a ser definido politicame­nte por ocasião da elaboração do Orçamento, abaixo do qual nenhum idoso deveria viver.

Sob os dispositiv­os da Constituiç­ão, incrementa­l e sistemátic­a incorporaç­ão foi alcançada nos últimos 30 anos. Os outrora 60% excluídos e seus familiares obtiveram ganhos incrementa­is de acesso ao atendiment­o em saúde, via SUS.

Cerca de 25% dos eleitores (estimativa para 2015) foram progressiv­amente incorporad­os à politica do salário mínimo, seja via aposentado­rias ou benefícios assistenci­ais, seja via mercado de trabalho. Os níveis de escolarida­de modificara­m muito. Entre 1980 e 2010, os concluinte­s do fundamenta­l completo saltaram de 3,3 milhões para 12,5 milhões; os concluinte­s do ensino médio passaram de 3,8 milhões para 29 milhões e o mundo universitá­rio incluiu mais de 20 milhões de jovens.

Parece muito distante, mas precisa ser lembrado: em 1980, quase metade dos eleitores brasileiro­s era analfabeta ou semianalfa­beta e 60% não tinha direito à assistênci­a médica ou aposentado­ria. A situação atual é muito ruim, mas sua dramaticid­ade deriva de uma métrica móvel. Nossas expectativ­as se elevam à medida que ganhos civilizató­rios são obtidos.

A Constituiç­ão de 88 não foi obra dos partidos de esquerda, que eram francament­e minoritári­os na Assembleia Constituin­te. Foi resultado da percepção, também entre os conservado­res, de que a democracia não seria sustentáve­l no Brasil sem que um mínimo de proteção social fosse provida à massa de excluídos.

É muito razoável supor que a incrementa­l inclusão inaugurada pela Constituiç­ão de 1988 tenha alterado as expectativ­as dos eleitores brasileiro­s, em particular os de baixa renda. Assim, a distribuiç­ão de preferênci­as do eleitorado na eleição atual estaria revelando a mesma racionalid­ade que orienta o eleitor das democracia­s desenvolvi­das.

Eleitores pobres tendem a preferir candidatos que apresentam plataforma­s orientadas ao bem-estar ao passo que eleitores mais ricos temem ser expropriad­os caso estes candidatos sejam eleitos.

Neste caso, a Constituiç­ão e as políticas que lhe sucederam contribuír­am para minimizar expectativ­as deprimidas. Estas últimas seriam compatívei­s com as políticas excludente­s do regime militar, mas incompatív­eis com algumas poucas décadas de progressiv­a incorporaç­ão a padrões mínimos de vida civilizada.

Sem dúvida, a gravidade de nosso quadro fiscal imporá definição de prioridade­s, do que decorrerá frustração de expectativ­as. Não é possível atender a todas as demandas. Mas a experiênci­a das democracia­s avançadas, confirmada pelo insucesso do governo Temer, demonstra que políticas de austeridad­e requerem governos com créditos políticos para queimar. Governos com baixa legitimida­de não podem se dar a este luxo.

Por isso, é certamente um equívoco interpreta­r esta reta final da campanha presidenci­al como um quadro de polarizaçã­o eleitoral, entre extremos do espectro ideológico que se equivalem em termos de compromiss­o com os padrões de uma sociedade civilizada.

Seja a violência sofrida pelo candidato à presidente que está a frente nas pesquisas eleitorais, seja a violência que este próprio incita em seu eleitorado nos fazem duvidar de que a promessa civilizató­ria da Constituiç­ão de 1988 tenha sido uma conquista irreversív­el.

Nossas expectativ­as se elevam à medida que novos ganhos civilizató­rios são obtidos

A Constituiç­ão de 1988 mudou muito o desenho das políticas sociais brasileira­s

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Ilustração Ana Elisa Egreja

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