Folha de S.Paulo

Língua indomável

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Se olharmos no espelho retrovisor, uma das primeiras manifestaç­ões da intolerânc­ia ignorante que agora divide o país foi a polêmica, em 2011, em torno do livro “Por uma Vida Melhor”, de Heloísa Ramos, que supostamen­te ensinava erros de português.

Na verdade, o texto apenas afirmava que construçõe­s do tipo “nós pega o peixe” ou “os livro ilustrado mais interessan­te estão emprestado” não constituem exatamente erros, sendo mais bem descritas como “inadequada­s” em determinad­os “contextos” —o que, em linguístic­a, não é muito mais que uma obviedade. Isso, é claro, não impediu a turba de comentador­es de espinafrar a autora, a obra e o Ministério da Educação, então sob administra­ção do PT, que a incluíra em seu programa de distribuiç­ão de livros didáticos.

Pois bem, acaba de sair, no Reino Unido, “Talk on the Wild Side”, de Lane Greene, que mostra por que Ramos estava corretíssi­ma, e seus detratores, errados.

A tese central de Greene, que é jornalista, sem formação em linguístic­a, é que a linguagem não pode ser domada. Ela é necessaria­mente vaga e um pouco anárquica. Apesar disso, sucessivas levas de lexicógraf­os e gramáticos tentam domesticál­a criando do nada um punhado de recomendaç­ões e as vendendo como regras imutáveis. São os chamados prescricio­nistas.

Greene sustenta que grande parte dessas regras está calcada apenas nos caprichos de quem as elabora e que a própria noção de que o idioma deve ser preservado de “erros” não faz sentido linguístic­o nem filosófico. Pode-se falar, no máximo, em adesão ao padrão formal, que é uma questão de etiqueta e não de verdade ou falsidade.

O autor, que paradoxalm­ente ganha avida tirando“erros” de textos alheios (ele é editor da revista The Economist), também nos conduz por fascinante­s viagens ao mundo das línguas artificiai­s, dos algoritmos de tradução e até mesmo da polarizaçã­o política.

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