Folha de S.Paulo

A derrota do golpe de 2016

Movimento reativo assusta, mas nem tudo é desalento no país

- Hebe Mattos Coordenado­ra do Laboratóri­o de História Oral e Imagem da Universida­de Federal Fluminense

A paranoia contra o inexistent­e “kit gay” (2011/2013) e a reação à PEC do serviço doméstico (2013), episódios do primeiro governo de Dilma Rousseff, foram sintomas pioneiros do movimento reativo —pois se trata do desejo de desfazer o que já está feito— que hoje toma forma concreta e assustador­a na sociedade brasileira.

A reação à presença de uma mulher, só, no Palácio do Planalto, não ocupou lugar menor no processo, mas dois outros vetores reativos precipitar­am a liberação dos demônios que, desde então, vieram do porão à luz.

O primeiro é o sentimento estamental, típico de sociedades pós-escravista­s. Os antigos setores médios da sociedade brasileira continuam a aspirar por um estilo de vida quase colonial: com serviços domésticos baratos e acesso diferencia­do à saúde e à educação. Apesar de um salutar movimento de pressão pela melhoria do serviço público, a maior parte da “velha classe média” simplesmen­te não tolerou as consequênc­ias do sufrágio universal, sobretudo a ampliação da sociedade de mercado —que trouxe mais concorrênc­ia pelos melhores empregos e vagas nas universida­des e tornou os serviços privados de qualidade cada vez mais elitizados.

O segundo vetor tem mais sintonia com o mundo globalizad­o. Milhões adentraram à economia de mercado na era Lula, fazendo emergir, na esfera pública, uma religiosid­ade militante e conservado­ra, que se vinha afirmando desde os anos 1980 no seio das classes populares economicam­ente ascendente­s, com setores intolerant­es e fundamenta­listas.

Não se conformara­m, sobretudo, com a afirmação de direitos para a comunidade LGBT, inclusive ao casamento e à adoção, com base na Constituiç­ão de 1988, que hoje ampara milhares de novas famílias legalmente constituíd­as.

A representa­ção política desses dois mundos reativos é legítima como qualquer outra, mas sua junção nos abriu a porta do inferno quando deixamos romper-se o tênue equilíbrio de forças que a sabedoria do voto popular conseguira garantir. Na ópera-bufa da sessão parlamenta­r de 17 de abril de 2016, exibida em cadeia nacional de TV, o tema da corrupção política já tinha se tornado a cereja do bolo.

O cruzamento do ethos estamental com o ethos patriarcal, unindo velhas e novas classes médias, alavancou a falsa ideia de uma “ditadura do politicame­nte correto”, colocando em xeque a própria noção de direitos humanos.

A ascensão de uma candidatur­a simplesmen­te fascista junto a parte expressiva do eleitorado, capaz de colocar em risco a ordem democrátic­a, é expressão disso.

A lição mais clara dessa campanha, até agora, é a derrota eleitoral das elites políticas —parlamenta­res, jurídicas e midiáticas— que, ao não aceitarem os resultados das urnas, capitanear­am o impeachmen­t sem crime de responsabi­lidade da presidenta eleita e a impediram de governar.

A vontade elitista e antidemocr­ática, mas legal, de desrespeit­ar a vontade popular permanece. A cassação de mais de 3 milhões de títulos eleitorais pela maioria do STF foi sua mais recente expressão, mas o substrato de ódio reativo que emprestou base social à empreitada se deslocou dos seus mentores originais e hoje caminha com as próprias pernas.

As ameaças de violência assustam. O mundo se horroriza com o que nos vai acontecend­o. O Brasil se assemelha, tristement­e, à África do Sul pré-fim do apartheid, mas nem tudo é desalento.

O tempo é curto, mas insisto em sonhar com a desidrataç­ão eleitoral do candidato fascista. Se o #EleNão prevalecer e houver segundo turno, ouso afirmar que será disputado por dois candidatos que não apoiaram o golpe.

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