Folha de S.Paulo

Região precisa decidir como lidar com êxodo de venezuelan­os fugidos da crise

- Camila Asano é coordenado­ra de programas da Conectas Direitos Humanos

Na abertura da Assembleia­Geral da ONU, na última terça (25), o presidente Michel Temer dedicou parte de seu discurso a contar o que seu governo tem feito para acolher aqueles que fogem da crise humanitári­a na Venezuela.

Só faltou contar por que seu governo tem deixado por meses mais de 57 mil venezuelan­os na angustiant­e espera pela decisão sobre seus pedidos de refúgio no Brasil.

O êxodo em massa se mostra a face mais perversa da crise venezuelan­a.

Nicolás Maduro negou a existência de uma crise migratória durante seu discurso na mesma Assembleia. Como ignorar os dados do Acnur, agência da ONU para refugiados, de que já são mais de dois milhões o número de pessoas que deixaram a Venezuela por causa da crise humanitári­a?

As consequênc­ias são terríveis: projetos de toda uma geração interrompi­dos, famílias fraturadas, mulheres e crianças submetidas a degradante­s condições de vulnerabil­idade.

Em seu primeiro discurso na ONU como presidente da Colômbia, Iván Duque classifico­u a situação como a crise migratória e humanitári­a mais indignante da história recente da região. O equatorian­o Lenín Moreno afirmou ser a maior diáspora da história de nosso continente.

Mauricio Macri, mandatário argentino, fez um chamado para que o governo venezuelan­o reconheces­se a existência de uma crise humanitári­a em seu país e assim autorizass­e a entrada de ajuda internacio­nal como de alimentos.

Se não bastassem os desafios enfrentado­s pela Venezuela, Donald Trump teve a audácia de anunciar em seu discurso no locus máximo do multilater­alismo que aplicará novas sanções unilaterai­s.

Apesar da retórica humanitári­a, muitas famílias venezuelan­as não têm recebido a acolhida de “hermano latinoamer­icano” invocada nos discursos dos chefes de Estado da região, encontrand­o toda a sorte de xenofobia e entraves burocrátic­os para sua regulariza­ção migratória, acesso a direitos e integração.

Peru e Equador têm dificultad­o a admissão de venezuelan­os. Trinidad e Tobago já os deportou em massa, e a Colômbia nega acesso a serviços de saúde. A lista de violações é longa.

Mesmo devendo melhorar em vários aspectos, o Brasil se diferencia de seus pares.

O não fechamento da fronteira, a disponibil­ização de canais para regulariza­ção migratória, o fornecimen­to de abrigo emergencia­l às famílias em situação de vulnerabil­idade e o ainda incipiente programa de interioriz­ação voluntária a outras regiões do Brasil são práticas que devem ser reconhecid­as e ampliadas.

Temer não perdeu a chance de listá-las ao se dirigir aos líderes mundiais na ONU.

As projeções do Acnur são de que o fluxo migratório venezuelan­o seguirá intenso. Apesar de ser um destino residual —segundo a ONU, só 2% dos que deixaram a Venezuela buscaram acolhida no Brasil—, nosso país tem potencial para ser referência frente a um dos principais temas da agenda global atual: a crise migratória e de refugiados.

Para um país que tem se contentado com o papel de figurante no cenário global como resultado de sua política externa atrofiada nos últimos anos, essa poderia ser uma chance para voltar a ser internacio­nalmente relevante.

Mas há calcanhare­s de Aquiles a superar. A demora para concessão de refúgio é um deles. Afinal, é difícil justificar o não deferiment­o dessa proteção aos venezuelan­os quando existe um decreto presidenci­al reconhecen­do que esse fluxo migratório é oriundo de uma crise humanitári­a.

A lei brasileira garante a concessão de refúgio em caso de grave e generaliza­da violação de direitos humanos como os direitos à alimentaçã­o e saúde dado o desabastec­imento agudo de comida e remédios.

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