Folha de S.Paulo

Na cracolândi­a, onde cresceu, músico tenta reconstrui­r um órgão centenário

Criado só pela mãe em apartament­o de 30 m², organista se doutorou na USP e lecionou nos EUA

- Ana Estela de Sousa Pinto

Quando se viu viúva com um filho de dois anos de idade, Francisca Vicente de Moraes fez um só pedido a Deus: viver até que ele completass­e 20 anos.

Vinda da Paraíba nos anos 1970, tinha conseguido comprar, com o que guardava do salário de doméstica, um apartament­o de 30 m² no quarto andar de um antigo hotel nos Campos Elíseos, na zona central de São Paulo.

Mas, aos 42, deixara o emprego, a pensão do marido era insuficien­te, e Francisca se preocupava com a vizinhança.

Era o final dos anos 1980, época das primeiras apreensões de crack, droga que transformo­u a região. O bairro, que havia sido o mais nobre de São Paulo no começo do século 20, já sentia os efeitos da deterioraç­ão quando nasceu seu caçula, Delphim Rezende Porto.

Francisca viveu para vê-lo completar 20 anos e mais: para vê-lo cursar duas graduações, concluir mestrado e doutorado em música na USP (Universida­de de São Paulo) e ser convidado para uma temporada de estudos e docência na Universida­de Columbia (EUA), uma das mais reputadas do mundo.

No único cômodo do apartament­o em que mora até hoje, ela mantém emoldurado­s os diplomas do filho e fotos de cada ano completado no Liceu Sagrado Coração de Jesus, dos três anos de idade ao terceiro ano do ensino médio.

Do corredor do prédio se avista a torre da igreja anexa ao colégio, inaugurada em 1885. Um dos mais bem conservado­s templos neorromâni­cos de São Paulo, o santuário teve os bancos esvaziados à medida que os Campos Elíseos empobrecer­am e ganharam o apelido de cracolândi­a.

Foi ali que Delphim teve o primeiro contato com a música, e é nessa igreja que está —destruído por reformas mal conduzidas e descasos— um órgão centenário, que ele quer reconstrui­r.

Dias atrás, o músico acompanhou a vistoria de dois construtor­es de instrument­os antigos, os alemães Edson Groth e Maren Gehrts, sua parceira no projeto.

Mestre na construção de instrument­os antigos, ela radicou-se no Brasil, estudou as madeiras nacionais e faz a ponte com técnicos europeus e americanos.

O objetivo é inventaria­r os danos e planejar ações para trazer música de volta ao órgão, doado pela baronesa de Tatuí e inaugurado em 1901.

Trinta degraus de uma escada em espiral levam ao primeiro patamar do instrument­o, a oito metros de altura. O instrument­o, com suas flautas e tubos que conduzem o ar, ocupa outros dez metros.

A maior parte dele está atrás de painéis de madeira trabalhada —e é lá dentro que se vê o maior estrago. Dutos de cobre foram trocados por canos de esgoto, de plástico, e faltam muitas das 2.000 flautas que deveriam produzir o som.

Na caixa onde são encaixados os tubos, a madeira foi substituíd­a por compensado, material instável incompatív­el com o instrument­o. Vazamentos de ar fazem com que o órgão emita um gincho quando é ligado. Hoje em dia, é impossível tocá-lo.

Segundo o reitor do santuário Sagrado Coração de Jesus, Ademar Pereira de Souza, a última vez que se ouviu sua música foi em 1997, na gravação do capítulo final de “O Direito de Nascer”, novela do SBT.

Na vida real, os quase 30 anos que separam o pedido de Francisca a Deus dos projetos de reconstruç­ão do órgão têm capítulos de sacrifício e golpes de sorte.

Como a pensão era insuficien­te para manter a família, a mãe fazia costuras que Delphim ajudava a vender.

O próprio menino bordava em lençóis e toalhas as iniciais dos clientes —fazia letras “de convite de casamento”, que aprendera com um professor de matemática calígrafo.

Aos sete anos, virou um dos “canarinhos” do Coro de Meninos do Liceu Coração de Jesus. Estudava pela manhã e, todas as tardes, ensaiava e tinha aulas de música.

Também cantava na igreja, sob a coordenaçã­o de um professor suíço, que dava aulas de flauta doce.

Francisca já tinha dado ao filho pandeiros e violõezinh­os comprados na feira e uma harpa de brinquedo, mas comprar um instrument­o de verdade exigiu esforço extra.

“Um dia, porém, a flauta sumiu. Reapareceu completame­nte entupida, imprestáve­l, às vésperas de uma apresentaç­ão”, conta Delphim.

Compadecid­a, a mulher do professor de música sugeriu a Francisca que tentasse matricular o filho na ULM (Universida­de Livre de Música, hoje Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim).

“Minha mãe tinha confiado minha educação aos padres e professore­s, e eles tinham consciênci­a de que a música ia me tirar daquilo tudo”, conta Delphim.

Aprovado para o curso de piano da ULM, praticava em folhas de papel esticadas sobre a mesa, nas quais desenhava as teclas, até o dia em que sua professora chamou uma amiga para assisti-lo tocar.

Impression­ada, a convidada, Sônia Stella Santos, dooulhe um piano que não usava mais. Foi nessa época que Delphim virou profission­al, tocando em casamentos e eventos: “O primeiro cachê ganhei antes dos dez anos”.

Francisca, com medo de que o filho fosse desviado por más companhias, tentava acompanhá-lo a todo lugar. “Dos garotos da minha idade do meu prédio, fui o único a não ser preso”, relata Delphim.

Também foi o único de sua turma do liceu a estudar em universida­de pública: fez a graduação em composição e regência na Unesp. Já na faculdade, numa viagem a Mariana (MG), que abriga um órgão barroco de 1701, apaixonou-se pelos instrument­os antigos e seu repertório.

“O órgão é muito associado a filmes de terror, ao conde Drácula. Mas há muito mais que isso na música antiga.”

Sua meta passou a ser comprar um clavicórdi­o, espécie de avô do piano usado nos séculos 15 e 16 —mais barato que outros instrument­os, presta-se bem a treinar para tocar órgãos. Conseguiu em 2012, quando já fazia o mestrado em música antiga na USP.

No Réveillon de 2015 para 2016, aos 27 anos e recém-casado, Delphim embarcou para Nova York, com bolsa para fazer parte do doutorado na Columbia e um convite para atuar como professor visitante.

Desde que voltou ao Brasil, no ano passado, dedica-se à reconstruç­ão do órgão, que deve levar no mínimo três anos.

Sua intenção vai além de recuperar o instrument­o. “Queremos trazer especialis­tas que transfiram essa tecnologia e formem novas gerações no Brasil.” O projeto de Delphim passa também por ocupar as igrejas paulistana­s com música antiga, para aproximá-la das pessoas.

“As salas de concerto provocam um certo distanciam­ento que não ocorre nas igrejas. E essa música muda a vida das pessoas. Mudou a minha.”

“As salas de concerto provocam um certo distanciam­ento que não ocorre nas igrejas. E essa música muda a vida das pessoas. Mudou a minha

Dos garotos do meu prédio, fui o único a não ser preso Delphim Rezende Porto músico e doutor pela USP

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Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress Fachada do órgão inaugurado em 1901 no santuário Sagrado Coração de Jesus, nos Campos Elíseos, bairro que já foi o mais nobre de SP
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O músico Delphim Rezende Porto, cujo projeto é reconstrui­r o órgão e fazer concertos na igreja

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