Folha de S.Paulo

Polo a cavalo com cabra decapitada é atração dos Jogos Mundiais Nômades

Atletas de 74 países estiveram no evento que também teve participaç­ão de dois brasileiro­s

- Fernanda Kiehl

Mulheres vestidas como guerreiras lendárias caminham com arcos em punho, homens cobertos em pele de lobo carregam selas em seus ombros, meninos equilibram gaviões enormes nos braços. Montanhas com picos congelados estão por todos os lados e mais de mil yurtas (cabana circular tradiciona­l de povos da Ásia Central) completam o visual.

Essa poderia ser a cena de um filme medieval, mas não. É a Vila Étnica de Kyrchyn, no Quirguistã­o, uma das arenas montadas para receber os Jogos Mundiais dos Povos Nômades, o maior evento esportivo da Ásia Central.

Na terceira edição no país, os Jogos reuniram dois mil atletas de 74 países competindo em 37 esportes de tradição nômade. Entre eles, diversas modalidade­s de wrestling, como a cavalo —conhecido localmente como Er Enish—, tiro com arco, caça com falcão e, o mais exótico deles, o Kok Boru, espécie de polo a cavalo em que a bola é uma cabra decapitada.

Considerad­o o esporte nacional no Quirguistã­o, a modalidade era a mais esperada pelo público.

Os jogos são disputados por dois times com quatro jogadores cada um. O objetivo é marcar mais gols —ou goats (inglês para cabras)— no adversário jogando o corpo da cabra dentro de um círculo. O esporte tem origem em uma antiga tradição dos nômades da Ásia Central de castigarem lobos que atacavam o rebanho dos acampament­os jogandoos de um lado para o outro.

A excentrici­dade do Kok Boru lhe rendeu fama internacio­nal e o esporte tem ganhado adeptos em outros lugares do mundo.

Neste ano, EUA e França competiram, mas a falta de prática dos times europeu e americano ficou evidente. Os franceses, por exemplo, pouco conseguira­m levantar o corpo do animal do campo.

“Gosto de ver a adesão de times de fora da Ásia Central, apesar de saber que deve ser muito difícil para eles. No Quirguistã­o, nascemos jogando Kok Boru, faz parte da nossa existência. É como o futebol em outras áreas do mundo”, afirmou o técnico da seleção quirguiz, Kanat Sydykov.

A final da modalidade foi entre Quirguistã­o e Uzbequistã­o. O time da casa venceu por 32 a 9. Apesar da larga vantagem, a torcida quirguiz não parou nem por um segundo de vibrar e os gritos entusiasma­dos de centenas de torcedores de todas as idades podiam ser ouvidos do lado de fora do hipódromo.

O evento aconteceu entre os 1 e 8 de setembro na província de Issyk-Kul, nordeste do país, e é iniciativa do governo do Quirguistã­o para dar visibilida­de e fortalecer a cultura nômade de diferentes nações do mundo.

“Não queremos que os Jogos Mundiais dos Povos Nômades sejam apenas sobre os quirguiz, mas que sirvam de oportunida­de para outras culturas nômades e pequenas comunidade­s mostrarem suas tradições e esportes étnicos. Queremos ver povos de todos os cantos do mundo unidos por um bem comum”, esclarece o idealizado­r dos jogos, o filantropo Askhat Akibaev.

Além das atividades desportiva­s, também foram realizadas apresentaç­ões culturais, concursos de dança, arte, música e recital de poemas.

Para a edição de 2018, a maior desde o início do projeto, em 2014, foram montadas duas grandes arenas: uma às margens do lago salgado de Issyk-Kul, em Cholpon-Ata, com hipódromo, estádio de lutas marciais e ringue de sumô. A outra a 40 km dali, em meio ao vale de Kyrchyn, para receber competiçõe­s de tiro com arco, caça com falcão e

“Queremos que os Jogos sirvam para culturas nômades mostrarem suas tradições e esportes étnicos Askhat Akibaev idealizado­r dos Jogos

Ortom —esse último, um esporte de estratégia de guerra que recria campos de batalha representa­ndo soldados com peças de ossos de carneiro.

Os ingressos são gratuitos e garantiram estádios lotados de espectador­es tanto do país quanto estrangeir­os.

Annabela Valente, de Portugal, conta que estava viajando pelo Quirguistã­o com o marido quando ouviu falar dos jogos e resolveu ver de perto.

“Estou gostando muito, é um evento complexo com muitas atividades acontecend­o ao mesmo tempo e me parece bem organizado pelas condições. Assisti a outros festivais de tradição nômade em pequenas aldeias do Quirguistã­o e mesmo assim os Jogos Mundiais dos Povos Nômades conseguiu me surpreende­r”, disse a empresária.

Entre as competiçõe­s mais disputadas estavam as diversas modalidade­s de wrestling. Cada país da região apresenta sua própria vertente da luta, como os iranianos com o Pahlavani, os quirguiz com o Alysh e os coreanos com o Ssireum. Todas são similares com a luta olímpica, mas apresentam pequenas variações nas regras e vestimenta.

Independen­temente da origem, os esportes têm adeptos em todos os cantos do mundo, inclusive no Brasil. Os atletas Danilo da Silva Rocha e Marat Garipov, cazaque naturaliza­do brasileiro, competiram na modalidade de Alysh, mas não ganharam medalha.

Essa é a segunda vez que a Confederaç­ão Brasileira de Wrestling participa dos jogos a convite da organizaçã­o. Em 2016, Keila Calaça foi a atleta responsáve­l por defender a camisa verde e amarela.

Os Jogos Mundiais dos Povos Nômades terminaram com um show de encerramen­to de três horas de duração na cidade de CholponAta. O Quirguistã­o foi o vencedor desta edição, com 40 medalhas de ouro, seguido de Cazaquistã­o e Rússia.

A próxima edição do evento, que é bianual, acontecerá pela primeira vez fora do território quirguiz. A ideia é que a cada seis anos os Jogos aconteçam uma vez no Quirguistã­o e duas em outros países.

A Turquia foi eleita para sediar os jogos de 2020 e, apesar da crítica de muitos locais e turistas que acham que o evento perderá sua originalid­ade, o idealizado­r dos jogos Akibaev garante que o legado da competição será preservado.

“As pessoas não devem pensar que apenas os quirguiz, ou cazaques, ou uzbeques são nômades. Parte da história da humanidade começa com o movimento de migração da África. Até mesmo o planeta Terra está constantem­ente em movimento. Todos somos nômades e temos o espírito nômade dentro de nós.”

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Vyacheslav Oseledko/AFP Rússia (de branco) e Quirguistã­o se enfrentam em disputa de Kok Boru na abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Nômades
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