Folha de S.Paulo

Marta e as meninas do Brasil

Se surgir uma nova craque, nós provavelme­nte seremos os últimos a perceber

- Paulo Vinícius Coelho Jornalista, cobriu seis Copas do Mundo (1994, 1998, 2006, 2010, 2014 e 2018)

Marta só tem uma. O talento excepciona­l da maior jogadora de futebol de todos os tempos, eleita pela 6ª vez melhor do mundo, jamais será igualado. Além de Tostão, quem diz isso é o diretor do Iranduba, Lauro Tentardini. O clube da região metropolit­ana de Manaus é dono do recorde brasileiro de público numa partida entre mulheres e jogará a Libertador­es feminina, em novembro.

Se alguma menina se aproximar de ser uma nova Marta, provavelme­nte nós, amantes do futebol no Brasil, seremos os últimos a perceber. Porque nós, apaixonado­s e especialis­tas, não damos a mínima para os jogos entre mulheres.

A Libertador­es será disputada no Amazonas por 12 clubes, com três representa­ntes brasileiro­s: Santos, campeão nacional, Audax, vencedor da última Libertador­es, e Iranduba, clube anfitrião.

Marta nasceu em Dois Riachos, Alagoas, muitas garotas começaram a jogar por sua influência, mas o mapa do futebol brasileiro jamais alcançou o sertão. A Amazônia, sim. A Arena recebeu no ano passado 8 mil pessoas em média nos jogos do Iranduba.

A semifinal do Brasileiro de 2017, Iranduba e Santos, registrou 25 mil torcedores. A final da Champions League, em maio, Lyon e Wolfsburg, foi assistida por 14 mil.

O futebol feminino do Brasil evolui lenta e silenciosa­mente. Até 2013, um clube poderia ser eliminado do Brasileiro depois de apenas quatro jogos. Hoje, o mínimo de partidas é 14. “Falta um calendário para as divisões de base, promessa da CBF para o ano que vem, mas melhorou muito”, diz Tentardini.

Apesar de o Santos ter sido o último campeão, o futebol feminino espalhou-se. Santa Catarina é forte com o Kindermann, vice em 2014 e eliminado nas quartas de final do atual Brasileiro pelo Flamengo. O interior de São Paulo tem uma das semifinais: Ferroviári­a e Rio Preto. O outro semifinali­sta é o Corinthian­s. A razão para descentral­izar é óbvia: “Em Kindermann e Manaus, houve mobilizaçã­o de público. Sou de Porto Alegre. O Inter faz bom trabalho, mas a torcida só quer saber do masculino”, diz Tentardini.

O Iranduba recuperou o investimen­to das empresas da zona franca de Manaus e seu patrocinad­or é a Transire, fábrica de máquinas de cartões de crédito e débito. A procura por indústrias era óbvia também para os clubes masculinos do Amazonas, mas não existiu nos últimos quarenta anos, desde quando o Nacional-AM tinha Toninho Cerezo no meio de campo. Hoje, o Manaus F.C., da Série D do Brasileiro dos homens, é a exceção.

No futebol do Brasil, em se plantando, tudo dá.

Sem plantar, nasceu Marta. Hoje, há uma plantação incipiente. Não basta mais culpar o governo, o Ministério do Esporte ou a CBF, no caso do futebol feminino. A culpa é nossa. Quantos pais dão uma bola de futebol a uma menina, quando ela nasce, e quantos oferecem o brinquedo para o garotão, que vai ser craque? Quantas linhas de jornal você leu e quantas notícias na TV você viu sobre o Audax, campeão da Libertador­es? Ou sobre o Iranduba? O público na semifinal do Brasileiro 2017 foi maior do que o de todas as finais de Champions League entre mulheres, menos três disputadas na Alemanha, país dos estádios cheios para meninos ou meninas.

O Brasil espera pelo talento de Kerolin, 17, da Ponte Preta, pretendida por clubes da China, sem que a maior parte do país nem sequer tenha ouvido falar nela. Kerolin pode ser a próxima Marta, mas nunca será igual, porque a melhor do planeta é como Pelé: só tem uma.

Se for craque, Kerolin não será milagre. Será fruto do trabalho de poucos, muito abnegados. E será tapa na cara de todos nós, que nem sabemos onde e como jogam nossas meninas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil