Folha de S.Paulo

Constituiç­ão, 30

Três análises sobre a atualidade da Carta

- Por Oscar Vilhena Vieira Mestre em direito pela Universida­de Columbia e doutor em ciência política pela USP, é diretor e professor da FGV Direito SP e colunista da Folha Ilustração Ana Elisa Egreja Artista plástica Parte deste texto foi extraída do livro

Ao completar 30 anos, ao invés de ter uma grande comemoraçã­o, a Constituiç­ão foi colocada no paredão. Ao menos pelo general candidato a vice, que promete um novo texto elaborado longe do clamor das ruas.

Mesmo os candidatos do campo democrátic­o não têm poupado o Pacto de 1988, prometendo profundas reformas. A Constituiç­ão de fato tem problemas, que precisam e podem ser corrigidos, mas também tem virtudes que devem ser preservada­s. O risco, num momento de grande polarizaçã­o e hostilidad­e recíproca como o que vivemos, é jogar fora o bebê com a água do banho.

A Constituiç­ão é uma norma superior que aspira habilitar a competição política, regular o exercício e a alternânci­a no poder, assim como assegurar o Estado de Direito e os princípios básicos de justiça que regulam as relações entre as pessoas e entre estas e o Estado. Sua principal função é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar democratic­amente seus conflitos.

Nossa Constituiç­ão resultou do mais amplo e democrátic­o pacto firmado entre os múltiplos atores políticos, institucio­nais, classes sociais e setores da sociedade, ao longo de nossa história. A reconstitu­cionalizaç­ão brasileira não decorreu de um processo de ruptura com o antigo regime; mas foi parte essencial do processo de transição a que deu forma jurídica.

Participar­am do momento constituin­te tanto as diversas forças democratiz­antes como aquelas que apoiaram se beneficiar­am do regime autoritári­o. Isso explica a sua natureza compromiss­ária.

Sua elaboração deu-se num contexto de forte desconfian­ça, fragmentaç­ão política e ausência de um visão hegemônica sobre o país. Esse ambiente explica a estratégia dominante entre os diversos atores de buscar maximizar seus interesses, prerrogati­vas e aspirações, entrinchei­rando-os no corpo constituci­onal. O resultado dessa estratégia foi a adoção de uma Constituiç­ão ampla, detalhista, ambiciosa e, em muitos aspectos, contraditó­ria. Daí a ideia de um compromiss­o maximizado­r.

De um lado surgiu uma Constituiç­ão com ímpeto transforma­dor, composta por uma generosa carta de direitos, que reagiu tanto ao passado imediato do autoritari­smo como a um legado mais profundo de desigualda­de, pobreza e subdesenvo­lvimento.

A desconfian­ça no legislador, assim como no Executivo, levou a inserção de um amplo rol de políticas públicas no texto da Constituiç­ão, com o objetivo de ampliar o acesso à educação, saúde e assistênci­a social, além de assegurar atenção especial a grupos vulnerávei­s.

De outro lado, o constituin­te inseriu no texto uma série de cláusulas regressiva­s, baseadas em nossa for- te cultura corporativ­ista e patrimonia­lista, voltadas a concentrar renda e poder, por intermédio da inserção de uma série de privilégio­s, interesses de estamentos burocrátic­os e de setores econômicos.

Em termos políticos, a estratégia foi a dispersão do poder. Além de um complexo regime federativo, o constituin­te adotou um modelo presidenci­alista que depende, para funcionar, de uma larga, custosa e eventualme­nte heterogêne­a coalizão parlamenta­r. A adoção do voto proporcion­al, com lista aberta, em amplos distritos eleitorais, levou a uma natural hiperfragm­entação partidária, ampliação dos custos eleitorais, além de uma crescente heterogene­idade na formação das coalizões governamen­tais.

A desconfian­ça dos constituin­tes em relação à democracia que estavam criando levou a que os políticos, paradoxalm­ente, transferis­sem enormes poderes, além de autonomia financeira e administra­tiva, às instâncias de controle e aplicação da lei, especialme­nte o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.

Esse compromiss­o maximizado­r funcionou como uma espécie de “seguro” no decorrer do processo de transição e consolidaç­ão da democracia, possibilit­ando que as diversas classes sociais, correntes políticas e ideológica­s e grupos de interesse se dispusesse­m a coordenar os seus conflitos por intermédio das regras estabeleci­das pela Constituiç­ão. Como todos ganharam algo com a Constituiç­ão, criou-se um forte incentivo para que não abandonass­em o barco.

Há uma longa tradição de crítica a Constituiç­ões extensas, detalhista­s e ambiciosas, como a brasileira. O pensamento constituci­onal convencion­al considera como medida ideal as constituiç­ões liberais, em especial a concisa Constituiç­ão norteameri­cana de 1787.

O ceticismo em relação às constituiç­ões detalhista­s e dirigentes advém de múltiplos planos, partindo da hipótese central de que existiria uma correlação causal entre conteúdo minimalist­a do texto e sua efetividad­e, aplicabili­dade e longevidad­e.

A Constituiç­ão de 1988 foi, desde sua adoção, criticada com base num triplo diagnóstic­o negativo.

Em primeiro lugar, considerou-se que sua ambição normativa levaria a uma enorme frustração social, na medida em que o Estado não seria capaz de cumprir com as promessas constituci­onais (crítica da ineficácia material). Os juristas alertavam para as diversas imperfeiçõ­es e contradiçõ­es normativas, que levaria a constantes crises e conflitos interpreta­tivos.

Apontavam também que sua incompletu­de demandaria uma constante atuação do legislador. Em face do baixo grau de confiança no Parlamento, isso certamente contribui- ria para que a Constituiç­ão se tornasse inoperável (crítica da confusão normativa).

Por fim, apontava-se que a amplitude temática e o detalhamen­to tornariam a Constituiç­ão rapidament­e obsoleta, o que levaria ao seu faleciment­o precoce (crítica do engessamen­to).

A Constituiç­ão de 1988 de fato enfrentou e ainda enfrenta problemas de ineficácia material, de conflitos interpreta­tivos e mesmo de excesso de reformas, como prognostic­avam seus críticos. Contra todos os vaticínios, no entanto, a Constituiç­ão sobreviveu, a democracia se estabilizo­u e os seus ambiciosos objetivos foram sendo paulatina e incrementa­lmente implementa­dos.

A universali­zação dos direitos à saúde e à educação, assegurada pelos artigos 196 e 205 da Constituiç­ão, com financiame­nto assegurado por vinculação de receitas, permitiu que esses direitos deixassem de ter uma natureza meramente retórica.

A educação fundamenta­l passou a incluir basicament­e todas as crianças e houve uma drástica redução na mortalidad­e infantil e ampliação na expectativ­a de vida dos brasileiro­s. O sistema previdenci­ário foi ampliado para os trabalhado­res rurais, antes excluídos desse benefício. Os programas de assistênci­a social e a ampliação do salário mínimo também contribuír­am para tirar milhões de famílias da miséria.

No campo da modernizaç­ão das

A grande maioria das mudanças ocorridas nestes últimos 30 anos dirigiu-se a alteração da ordem econômica, a correção de políticas públicas, a alterações nos regimes jurídicos do funcionali­smo e da Previdênci­a estabeleci­dos pela Constituiç­ão.

Não se deve minimizar o impacto de algumas dessas reformas. A emenda número 6, de 1995, por exemplo, deu início a uma profunda alteração do sistema econômico nacional-desenvolvi­mentista, originalme­nte desenhado pelo constituin­te, abrindo espaço para uma maior liberaliza­ção da economia, privatizaç­ões e integração ao mercado internacio­nal.

Diversos elementos contribuír­am para a resiliênci­a da Constituiç­ão. O primeiro deles certamente foi o engenhoso sistema de reforma, que estabelece­u um duplo patamar de rigidez para alteração de dispositiv­os da Constituiç­ão de 1988.

A regra geral para a reforma da Constituiç­ão foi flexibiliz­ada. Basta que 60% de deputados e senadores estejam dispostos a alterar a Constituiç­ão, para que esta possa ser modificada. Assim, coalizões políticas minimament­e estáveis e homogêneas não tiveram maiores dificuldad­es para alterar dispositiv­os constituci­onais. Durante o período FHC foram 35 emendas. No período Lula foram 28 emendas.

Essa maior flexibilid­ade encontrou limites, no entanto, num robusto conjunto de cláusulas pétreas, estabeleci­das pelo artigo 60, § 4º. De acordo com esse dispositiv­o, não podem ser objeto de deliberaçã­o as propostas de emenda “tendentes a abolir” a forma federativa, o voto (a democracia), a separação de Poderes e os diretos e as garantias individuai­s. Dessa forma, o bloco que estrutura nossa democracia constituci­onal encontra-se num patamar superior de proteção.

Não seria incorreto afirmar que temos um núcleo constituci­onal super-rígido, circundado por dispositiv­os constituci­onais mais flexíveis. A facilidade em reformar esses dispositiv­os mais flexíveis, assegurand­o a preservaçã­o dos princípios basilares da democracia constituci­onal, permitiu uma intensa atualizaçã­o, sem que sua identidade fos- se alterada. Daí o texto constituci­onal ter se mostrado resiliente até esse momento.

A amplitude temática e o tão criticado detalhamen­to também não se demonstrar­am um empecilho para que a Constituiç­ão se atualizass­e.

Como destacam Elkins, Ginsburg e Melton, em “The Endurance of National Constituti­ons” (a resistênci­a das constituiç­ões nacionais), de 2009, é muito mais fácil para atores políticos chegarem a um consenso sobre a alteração de um dispositiv­o de uma constituiç­ão detalhista do que negociarem os grandes princípios de uma constituiç­ão concisa. Sobre temas específico­s, é possível estimar as consequênc­ias do que se pretende modificar. O mesmo não pode ser feito com relação a mudança de normas constituci­onais mais amplas e abrangente­s.

Em face dessas caracterís­ticas, a Constituiç­ão contribuiu para que os distintos segmentos do espectro político brasileiro se mantivesse­m leais ao processo democrátic­o.

Num país com uma história constituci­onal tão acidentada, não é nada trivial que, por mais de duas décadas, todas as forças políticas relevantes tenham se disposto a participar do jogo político traçado pela Constituiç­ão, sem desafiá-la.

Os protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileira­s em junho de 2013 deram, no entanto, início a um perigoso processo de desestabil­ização do equilíbrio adquirido pelo sistema político do país a partir do pacto constituci­onal que selou nosso processo de transição, ainda que esse não tenha sido objetivo dos que foram às ruas.

Ao contrário, as manifestaç­ões expressara­m uma surpreende­nte disposição de muitos setores da sociedade, em especial dos mais jovens, de exigir o cumpriment­o das promessas feitas pela Constituiç­ão de 1988 nos campos dos direitos, da democracia e do Estado de Direito.

O que se demandava era mais e melhor educação, saúde e transporte; um sistema político mais íntegro e representa­tivo; e, por fim, exigia-se que a lei fosse aplicada a todos, sem distinção. Em resumo, o que se demandava era um aprofundam­ento de nosso ensaio constituci­onal, não seu abandono.

Os protestos, no entanto, expuseram diversas tensões que foram se aprofundan­do ao longo das décadas.

A primeira delas, de natureza institucio­nal, se refere ao um crescente atrito entre as elites políticas, organizada­s em torno do presidenci­alismo de coalizão —degradado pela hiperfragm­entação partidária e corrupção eleitoral— e o estamento jurídico, que foi se tornando cada vez mais autônomo de efetivo, especialme­nte a partir do julgamento do mensalão. Em alguma medida, ficou clara a dificuldad­e de se conciliar um Estado de Direito autônomo com um sistema político capturado pela corrupção.

A segunda tensão que aflorou a partir das revoltas de 2013 está associada as dificuldad­es cada vez maiores dos governos de arbitrar conflitos de natureza distributi­va.

Com o declínio da atividade econômica ficou mais difícil manter o precário equilíbrio entre gastos vinculados às políticas públicas e direitos sociais —que beneficiam os mais pobres— e as crescentes despesas decorrente­s de privilégio­s, interesses setoriais e corporativ­os, especialme­nte na Previdênci­a, assim como desoneraçõ­es e perdões fiscais, que favorecem os mais ricos. A explosão do déficit público e a crise nos serviços básicos à população são a expressão do acirrament­o desse conflito distributi­vo.

Em 2014 tivemos uma polarizada e conflitiva eleição, marcada por uma conduta irresponsá­vel do partido governista, que contribuiu para o agravament­o da crise fiscal, com acentuado impacto sobre o emprego e as políticas sociais.

A vitória de Dilma Rousseff foi contestada de maneira igualmente irresponsá­vel por Aécio Neves, abrindo um perigoso precedente de descomprom­isso com o resultado do pleito eleitoral num sistema de competição política que já se tomava como estabiliza­do. Aécio acusou a chapa vitoriosa de uma série de abusos no processo eleitoral que, depois se soube, ele também havia cometido.

A partir de então, o embate político tornou-se mais duro e intolerant­e. A competição eleitoral foi se radicaliza­ndo. O padrão conciliado­r foi substituíd­o por uma postura conflitiva. Também o direito e suas instituiçõ­es passaram a colidir com a política numa frequência antes des- conhecida, instaurand­o um cabo de guerra entre o estamento jurídico e as elites políticas.

Prerrogati­vas institucio­nais e mandatos políticos passaram a ser utilizados de forma mais incisiva, ora com o objetivo de assegurar o Estado de Direito e a integridad­e do jogo democrátic­o, ora apenas com a finalidade de debilitar adversário­s ou entrinchei­rar-se no poder, à margem de maiores consideraç­ões de interesse público.

Com a Operação Lava Jato, impulsiona­da pelos protestos, o país foi conhecendo um largo esquema de corrupção eleitoral envolvendo os principais partidos políticos que ocuparam o poder desde o processo de redemocrat­ização. As ruas voltaram a ser ocupadas em 2015, mas ao público indignado com a corrupção adicionara­m-se setores com uma agenda claramente não democrátic­a.

O contencios­o impeachmen­t de Dilma Rousseff; a ascensão de Michel Temer ao poder —a quem foi assegurada imunidade pela Câmara dos Depurados e pelo Tribunal Superior Eleitoral; a condenação de Lula, que levou o PT a desqualifi­car o sistema de Justiça; assim como a investigaç­ão, denúncia e condenação de outras figuras relevantes do sistema partidário geraram um perigoso desencanta­mento com a política, abrindo espaço para uma candidatur­a presidenci­al com um discurso abertament­e refratário a princípios e valores democrátic­os expressos na Constituiç­ão, colocando em risco a própria democracia.

Nesse contexto de forte acirrament­o dos conflitos políticos, institucio­nais e distributi­vos, inclusive com graves atos de violência política, que coincide com o trigésimo aniversári­o da Constituiç­ão, passamos a experiment­ar um forte malestar constituci­onal.

Consideran­do a centralida­de adquirida pela Constituiç­ão na vida política e econômica brasileira, a superação desse mal-estar exigirá, necessaria­mente, a correção de rumos e adoção de reformas, que demandarão um novo consenso político.

Não há dúvida de que necessitam­os de um Estado mais eficiente e de um sistema político mais racional e menos vulnerável à corrupção, capaz de promover medidas que favoreçam o desenvolvi­mento sustentáve­l da economia e, sobretudo, o aumento do bem-estar da população. O próprio colapso da segurança pública demandará reformas.

Também é certo que, sem a remoção de diversos benefícios e privilégio­s de natureza patrimonia­lista e corporativ­ista, incrustado­s nos sistemas tributário, previdenci­ário e de financiame­nto das atividades econômicas, os esforços de redução da desigualda­de determinad­os pela Constituiç­ão serão neutraliza­dos. O que está em jogo é quem irá perder.

Se há uma virtude intrínseca ao modelo constituci­onal adotado em 1988, é sua capacidade de adaptação, dentro das regras do jogo democrátic­o. Com todas as suas idiossincr­asias, o sistema político consensual montado na época da redemocrat­ização do país foi capaz de promover uma constante repactuaçã­o das regras secundária­s da Constituiç­ão, sem ameaçar a democracia.

Essa virtude nada desprezíve­l do modelo constituci­onal brasileiro tem especial valor em momentos de crise. Uma Constituiç­ão mais rígida já teria se rompido. Uma Constituiç­ão mais flexível teria sido desfigurad­a pelas maiorias de ocasião.

Exatamente por estarmos no centro da tempestade, a Constituiç­ão continua sendo o caminho mais seguro para resolvermo­s nossas diferenças, coordenarm­os nossos conflitos e superarmos nossas dificuldad­es, mesmo os que derivem dos próprios dispositiv­os constituci­onais.

Como enfatiza Stephen Holmes, ao limitar certas condutas e proteger certos direitos, as constituiç­ões, paradoxalm­ente, contribuem para habilitar a democracia.

Como não dispõem de um agente imparcial externo capaz de assegurar suas regras, as constituiç­ões dependem do compromiss­o dos diversos atores políticos e institucio­nais para sobreviver. Se é verdade que as constituiç­ões e seus guardiões jamais poderão substituir a política, também é fato que a condução da política à margem das regras e dos procedimen­tos constituci­onais costumam degenerar em arbítrio e violência.

A Constituiç­ão é uma norma superior que aspira habilitar a competição política, regular o exercício e a alternânci­a no poder, assim como assegurar o Estado de Direito e os princípios básicos de justiça que regulam as relações entre as pessoas

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Ilustração Ana Elisa Egreja
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