Folha de S.Paulo

A tirania da irreverênc­ia

É impossível tratar de alguns autores, como Primo Levi, no tom arrojado dos booktubers

- Por Ismar Tirelli Neto Poeta e escritor

“Quem é ‘você’ para falar de literatura?” é uma pergunta a que os booktubers já parecem mais ou menos habituados, e que lhes chega disparada de todas as frentes —intelectua­is, membros de “fan bases” percebidas como injustiçad­as etc. É também uma pergunta que coloco frequentem­ente a mim mesmo.

O que me capacita, para além de estar no mundo, a falar sobre o que quer que seja? Neste caso específico, pareço ocupar posição curiosa, equidistan­te tanto daqueles que os booktubers taxam de “intelectua­loides” quanto dos próprios booktubers. Estive ao largo do fenômeno por muitos anos, vagamente ciente do que se passava.

Tenho uma pequena prática literária. Crítica também, quando me pedem. Esta prática literária se dá majoritari­amente em poesia, pelo menos até o presente momento. E poetas, sobretudo os que a boa morte não fez ainda o favor de levar, são seres eminenteme­nte negligenci­áveis.

Os canais que tenho frequentad­o nestes últimos dias, quando tratam de poesia, tendem a parar, tal como meus professore­s de literatura do ensino médio, na geração mimeógrafo. Discutem Ana Cristina Cesar e Leminski, pouco além. Digo isto para demonstrar o quão a salvo estive até há pouco.

Recentes polêmicas sobre a prática levaram-me a frequentar alguns destes canais na esperança de emergir da experiênci­a com juízo pertinente e avisado. Confiava que este fenômeno pudesse eventualme­nte dar lugar a discussões mais fecundas, embora menos divertidas.

Querendo ou não, o booktubing “reformula” com clareza implacável uma série de questões pertinente­s. Existe maneira adequada de falar sobre literatura? Haverá outras instâncias que não a crítica acadêmica e a crítica jornalísti­ca?

O fato é que muito rápido percebemos os traços comuns, a amarra tonal que parece unir todos estes canais. Há uma descontraç­ão compulsóri­a aí, herdada do “youtubismo” como um todo. “Oi, gente, hoje eu vim aqui falar pra vocês sobre...”.

Os signos de arrojo e irreverênc­ia têm qualquer coisa de tiranizant­e. Tanto no texto quanto na imagem. Oferecem restrições a priori. Impossível falar a sério dessa maneira. Impossível tratar de certos tipos de literatura neste tom.

Ou será possível? Uma das experiênci­as mais desagradáv­eis que tive durante esta imersão foi assistir a um vídeo sobre o Primo Levi. As duas apresentad­oras abrem o vídeo discutindo qual seria a pronúncia correta do nome do autor. Gesticulam, testam possibilid­ades. São joviais e simpáticas, vestem-se como num dos primeiros filmes do Almodóvar.

Atrás delas, uma estante que diz muito mais sobre o que o senso comum tem na conta de elegância do que sobre literatura. Reproduçõe­s de pôsteres de filmes do Polanski e do Bava, um porta-canetas em formato de abóbora de Halloween. Esses signos querem comunicar que estamos nas mãos de pessoas um pouco melhores que a média, mas ainda assim acessíveis e dinâmicas. Não há real diferença entre essas apresentad­oras e o pessoal que enxameava a saída do Estação Botafogo quando eu era moço. Gente exasperant­e, mas inofensiva.

Era o que eu pensava, o que eu vinha pensando. Até que uma delas pronunciou o nome Auschwitz. E na maneira como ela disse esse nome, esse nome maldito, esse nome que há tantas décadas buscamos maneira justa e cabível de pronunciar, uma absoluta imoralidad­e se insinuava. Uma certa alegria. Uma atitude um pouco exclamativ­a. Como se a apresentad­ora estivesse recomendan­do um musical da Broadway. “Auschwitz!”. “Ele foi prisioneir­o de... Auschwitz!”.

A partir desse momento, as cores pareceram vibrantes demais, e todo o repertório gestual —abraçar um exemplar de “71 Contos de Primo Levi” como se fosse um cãozinho filhote, algo assim—, perturbado­ramente inadequado. Em nenhum outro momento o problema tonal que tanto me aflige no booktubing se fez tão evidente.

Se alguém, independen­temente de suas intenções (desnecessá­rio dizer que as apresentad­oras não são “a favor” do Holocausto, tratamos aqui de outra coisa), consegue pronunciar a palavra “Auschwitz” daquela maneira, então, estamos mesmo perdidos e o mundo já acabou.

Dou um exemplo bastante extremo de desconexão tonal, mas há outras coisas inquietant­es a ressaltar. A doentia importânci­a que se dá ao “tamanho” dos livros consumidos, por exemplo. A leitura de “calhamaços” é celebrada como teste de resistênci­a. Os objetos ganham.

Percebe-se também uma certa tendência autocongra­tulatória em momentos de crise. São indivíduos muito ciosos de terem inventado um formato, de terem formado um nicho, e quando são chamados a se responsabi­lizar pelo que fazem, cantam o próprio pioneirism­o como manobra de distração.

Os opositores, como outros já assinalara­m, são “invejosos” e “fracassado­s”. Fica-se assim, no pátio do colégio, e raramente as resenhas excedem, em interesse, os roteiros de leitura rasos e convencion­ais das salas de aula (pelo menos as que eu frequentei).

É difícil conciliar o vibrante do formato com o mar de platitudes em que nadam seus criadores. Em tese, nada mais interessan­te e correto que um indivíduo se expor e fincar no mundo suas opiniões sobre determinad­o assunto.

Mas penso que o booktubing pode mesmo integrar um ciclo de desencanto mais abrangente que engloba toda a internet. Tivemos, em algum momento, a faca e o queijo na mão para democratiz­ar saberes e construir sólidas comunidade­s em torno de gostos compartilh­ados. E tomamos a direção contrária.

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Alex Kidd

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