Folha de S.Paulo

Uma nova Constituin­te?

Autor afirma que Carta de 1988 espelhou preocupaçõ­es da redemocrat­ização e defende a convocação de uma nova Assembleia para tratar de temas como pacto federativo e sistema político

- Por Fabio Feldmann Foi deputado constituin­te e relator-adjunto da revisão constituci­onal de 1993

Nos próximos dias, haverá a comemoraçã­o dos 30 anos da Constituiç­ão Federal de 1988. Tempo suficiente para que se faça um balanço do seu real significad­o para a sociedade brasileira, em que pesem controvérs­ias no que tange a sua extensão: a Constituiç­ão trata de matérias que vão da República até normas relativas a relações familiares, de modo que hoje temos um direito constituci­onal que abrange repertório enorme.

A convocação da Assembleia Nacional Constituin­te se deu como última etapa do processo de redemocrat­ização no Brasil. À época, a grande discussão tinha como ponto central dar poderes constituin­tes ao Congresso Nacional ou convocar de uma Constituin­te autônoma com uma eleição específica para a escolha de seus membros.

Prevalecen­do a primeira alternativ­a, tivemos uma Constituin­te que, pela primeira vez em nossa história, não se baseou em um projeto prévio.

A tentativa de se transforma­r a Comissão Arinos em uma instância capaz de apresentar um projeto para a Constituin­te e o país não foi bemsucedid­a por, basicament­e, não possuir o indispensá­vel requisito de legitimida­de.

Desse modo, a Assembleia Nacional Constituin­te gozou de absoluta autonomia para a elaboração da Carta, ainda que tenha se inspirado no texto Arinos e, especialme­nte, nas constituiç­ões da Espanha de 1978 e de Portugal de 1976.

Hoje, entendo que foi uma opção adequada e, com isso, exigiu maior tempo para sua elaboração. Aliás, um dos grandes vetores de pressão sobre a Assembleia foi o de que seus trabalhos se encerrasse­m o quanto antes para que o país pudesse “voltar aos trilhos”.

Nasceu, nesse parto, a Constituiç­ão Cidadã, como definiu à época Ulysses Guimarães. Ela teve como objetivo principal redesenhar a cidadania dos brasileiro­s. Nesse sentido, foi inegavelme­nte generosa, abrindo caminho para avanços que vieram logo a seguir em termos de novos direitos e fortalecim­ento de diversas instituiçõ­es que hoje são indispensá­veis.

O Sistema Único de Saúde é um desses exemplos, além do direito dos consumidor­es, fortalecid­o pelo Código do Consumidor (1990). Na área ambiental, um capítulo foi criado para contemplar o tema e uma série de dispositiv­os fundamenta­is encontram-se em todo o texto constituci­onal, como consicaben­do-lhe derar como função social da propriedad­e o respeito ao meio ambiente e a utilização adequada dos recursos naturais.

A Assembleia Nacional Constituin­te atendeu demandas daquele momento e foi influencia­da pelas circunstân­cias de então. Não foi possível, assim, adotar um dispositiv­o que proibisse a discrimina­ção por orientação sexual nem se cogitou tratar dos transgêner­os, pelo simples fato de que ainda era um assunto incipiente.

A Constituiç­ão americana, por tratar basicament­e da relação entre a União e os estados federados (pacto federativo), da relação entre os Poderes e da representa­ção política na Câmara e no Senado, sofreu poucas e importante­s emendas.

Por sua vez, ganhou a Suprema Corte Americana um enorme papel, decisões paradigmát­icas sobre aborto, integração racial, controle de gases efeito estufa e muitas outras. Pelo seu papel, a composição da Corte é objeto de amplo debate e disputa em função das posições sobre os temas controvert­idos por parte de seus candidatos.

No Brasil, apenas recentemen­te o Supremo Tribunal Federal passou a ser conhecido, e hoje surgem novos temas como a vitalicied­ade dos ministros versus mandato e a autonomia das decisões monocrátic­as versus colegiado. Até mesmo a transmissã­o das sessões tem sido objeto de polêmica na sociedade.

Mesmo reconhecen­do os grandes avanços e a importânci­a da Constituiç­ão Federal de 1988, é inegável que temas fundamenta­is para o Brasil deixaram de merecer tratamento adequado.

A Carta abrange da República à família; temos um direito constituci­onal com repertório enorme

E isto por uma única razão: a Assembleia Nacional Constituin­te espelhou as principais preocupaçõ­es da época, cujo repertório não incluía os grandes temas atuais: a representa­ção política, o sistema eleitoral, a organizaçã­o dos partidos políticos e qual o pacto federativo razoável em termos de atribuiçõe­s designadas à União, estados e municípios e seu respectivo financiame­nto.

Embora desde a década de 1970 o país viva uma realidade metropolit­ana, ainda existe um déficit expressivo das regras de governança sobre a relação entre estados e municípios.

Os exemplos são conhecidos: a distribuiç­ão desigual da representa­ção da população na Câmara dos Deputados e a crise fiscal pela qual passamos, que exige repensarmo­s o sistema tributário nacional, bem como o financiame­nto das atividades públicas e governamen­tais.

Neste particular, é bom lembrar que nesses últimos 30 anos houve um incrível aumento da carga tributária sem que o cidadão tenha como retribuiçã­o uma boa qualidade de serviços públicos.

Quer dizer que as reformas necessária­s terão que ser feitas em um espaço relativame­nte reduzido para que venham a obter a legitimida­de necessária.

O caminho das emendas constituci­onais empregado nos últimos 30 anos tem enfrentado dificuldad­es pelo fato de que criamos um presidenci­alismo de coalizão, no qual o Executivo forma maiorias provisória­s. Isso se deve, inclusive, ao fato de que na Constituin­te caminhávam­os para o parlamenta­rismo e, por questões meramente circunstan­ciais, venceu o presidenci­alismo.

Como consequênc­ia, temos na Constituiç­ão Federal instrument­os típicos do sistema parlamenta­r, como a medida provisória, que tinha como objetivo substituir o decreto-lei. Este era considerad­o típico dos regimes autoritári­os pelo fato de que criava situações jurídicas no momento de sua edição.

Mas, se compararmo­s os dois instrument­os, a medida provisória é revestida de um caráter mais drástico.

O maior equívoco da Constituiç­ão Federal de 1988 talvez tenha sido o de não prever revisões de tempos em tempos, com exceção daquela que se realizou, parcialmen­te, em 1993. Esta, relatada pelo deputado Nelson Jobim, tratou de poucos temas, como a admissão da dupla cidadania e a redução do mandato presidenci­al, sem promover grandes alterações até porque faltou à revisão legitimida­de por parte da sociedade e apoio parlamenta­r.

É oportuno olharmos a recente experiênci­a americana com a eleição de Donald Trump, que demonstra que, mesmo em democracia­s historicam­ente consolidad­as, estilos populistas podem representa­r riscos às instituiçõ­es, exacerband­o as polarizaçõ­es hoje presentes em praticamen­te todos os países.

Ao levarmos em consideraç­ão a falta de maturidade da sociedade brasileira no período da Constituin­te e, obviamente, as grandes mudanças ocorridas no mundo, não vejo razão para que não tenhamos a coragem de propor uma nova Constituin­te que trate exclusivam­ente do pacto federativo, associado aos instrument­os de financiame­nto das atividades designadas aos entes federativo­s. Além das questões cruciais da representa­ção política e do sistema eleitoral, associados à organizaçã­o dos partidos políticos e, eventualme­nte, a possibilid­ade de candidatur­as avulsas.

Para tanto, impõe-se um engajament­o das nossas lideranças políticas, da sociedade civil e do próprio STF na elaboração de uma emenda convocatór­ia desta eventual Constituin­te, traçando seus limites de atuação e excluindo, com isso, a possibilid­ade de retrocesso no que tange às cláusulas pétreas.

Assim, poderemos atenuar riscos de tentações autoritári­as, cada vez mais presentes no cenário eleitoral brasileiro, e, simultanea­mente, garantir aos futuros governante­s a possibilid­ade de criar condições de enfrentame­nto à severíssim­a crise pela qual passamos.

Por fim, vale advertir que esta proposta só adquire sentido se formos capazes de desenhar, de modo democrátic­o, o processo dessa nova Constituin­te, ao trazer para a discussão todas as principais forças e tendências políticas. E lembrar que o próximo dirigente máximo do país, seja quem for, terá como mote principal assegurar o bem-estar, em sentido amplo, dos brasileiro­s de hoje

 e das futuras gerações.

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