Folha de S.Paulo

A crise argentina

O erro de Macri foi não ter negociado com a sociedade o ajuste fiscal

- Samuel Pessôa Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP

A Argentina saiu da paridade do câmbio em 2002. Crise econômica profunda naquele ano, com queda do PIB de 14,7%, expansão do desemprego para 21,5%, inflação ao consumidor de 41% e aguda desorganiz­ação social.

O governo Néstor Kirchner, que assumiu em 2003, beneficiou-se de três fatos.

Primeiro, havia elevadíssi­ma ociosidade. O espaço para o cresciment­o era amplo —de fato, entre 2003 e 2008 a expansão anual média foi de 8,4%.

Segundo, o governo Menem, na gestão do ministro da Economia, Domingos Cavallo, promoveu uma série de reformas liberaliza­ntes em diversos mercados. As reformas não geraram impactos relevantes sobre a produtivid­ade pois o regime cambial, inapropria­do principalm­ente em um momento de choque negativo de termos de troca, como ocorrera entre 1997 e 2000, impediu o pleno funcioname­nto da economia.

Terceiro, o cenário mundial se inverteu, a China bombou e as perdas de termos de troca se transforma­ram em um longo período de ganhos.

Esses três fatores produziram um longo período de cresciment­o da economia argentina com inflação relativame­nte baixa para os padrões do país (média anual de 7,9% a.a. entre 2003 e 2008) e, muito em função do ajuste e das reformas de Cavallo, confortáve­l situação fiscal.

Inicialmen­te a política monetária foi frouxa. Juros muito baixos. O que gerou aceleração da inflação mesmo com a política fiscal em ordem.

Com o tempo, em que pese o enorme cresciment­o da receita de impostos, a situação fiscal se deteriorou. Foi se construind­o um déficit primário e, ao mesmo tempo, a aceleração inflacioná­ria ganhou corpo.

O país não tinha acesso aos mercados internacio­nais de capital em função do calote que dera na dívida externa em meio à crise. A conta de capital era fechada e, portanto, não se reconstrui­u uma dívida externa.

A deterioraç­ão econômica produziu, ao longo do período da presidênci­a de Cristina Kirchner, redução do cresciment­o com aceleração da inflação.

Cristina legou para Macri economia com baixo cresciment­o, inflação em 25% ao ano e déficit primário na ordem de 5,5% do PIB.

Macri teria muita dificuldad­e. Ajuste fiscal de 5,5 pontos percentuai­s do PIB significa refazer o pacto social. Macri não avisou a população. Teria que liderar essa repactuaçã­o. Tomou outro caminho. O otimismo com o país gerou novo espaço para o endividame­nto externo.

A crença em ganhos de produtivid­ade —com a melhora da política econômica e a elevação do investimen­to público— levaram o governo a traçar um cenário de forte aceleração do cresciment­o.

O ajuste fiscal viria principalm­ente desse cresciment­o. Os economista­s ortodoxos de Macri com a cabeça de nossos

heterodoxo­s.

O cenário só ficava de pé com a bonança internacio­nal.

O cresciment­o não veio da forma esperada, o ajuste fiscal foi lento, a dívida externa cresceu, a dívida interna também (especialme­nte a denominada em moeda estrangeir­a), o déficit em conta-corrente explodiu e a inflação ficou teimosamen­te acima de 25% a.a.

A necessidad­e de dólares para fechar as contas e menor disponibil­idade do mundo em ofertá-los jogou a economia nos braços do FMI.

Agora partindo de um ponto muito pior (inflação potencialm­ente em 40% e retração da economia de pelo menos 3,0%

em 2018) e com promessas draconiana­s —ajuste fiscal de 2,7 pontos percentuai­s do PIB já em 2019, por sinal ano de eleições presidenci­ais.

O erro de Macri foi não ter negociado com a sociedade o ajuste fiscal.

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