Folha de S.Paulo

Memórias da Maria Antônia

Há 50 anos estudantes de esquerda da USP e de direita do Mackenzie se enfrentara­m na Maria Antônia, numa batalha que marcou época. Livros sobre o episódio são relançados neste ano

- Por Fernando Granato Jornalista e escritor, é autor de “O Negro da Chibata” (Objetiva) e “Nas Trilhas de Quixote” (Record)

Os documentos agora divulgados, desapareci­dos durante o regime militar, sobreviver­am graças ao professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), que guardou cópia de todo o material

Uma ficha amarelada pelo tempo, que pertenceu ao extinto Dops (Departamen­to de Ordem Política e Social) e hoje está no Arquivo Público do Estado de São Paulo, revela que cinco jovens estudantes foram indiciados em inquérito policial no dia 8 de outubro de 1968, com base na Lei de Segurança Nacional, porque “tomaram” o prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universida­de de São Paulo.

O episódio da invasão da faculdade, que havia começado meses antes, em julho daquele mesmo ano, foi o primeiro de uma série de acontecime­ntos que acabaram se desdobrand­o na Batalha da Maria Antônia: conflito ocorrido nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, entre alunos da USP e do Mackenzie, que transformo­u essa rua onde ficavam os campi das duas universida­des em praça de guerra, com a morte de um estudante. O atirador nunca chegou a ser identifica­do.

O ano de 1968 havia começado tenso no Brasil e no mundo. No Rio de Janeiro, em março, o Restaurant­e Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço, foi palco da morte de um secundaris­ta pela ditadura militar. Ali, durante a repressão a uma passeata, a polícia invadiu o local e atirou no jovem Edson Luís.

Na França, em maio daquele ano, greves estudantis em universida­des e escolas de ensino médio acabaram por mobilizar vários setores da sociedade e culminaram numa paralisaçã­o geral com proporções nunca vistas. Nos EUA ocorreram manifestaç­ões contra a Guerra do Vietnã.

Na Tchecoslov­áquia, o movimento denominado Primavera de Praga, liderado por intelectua­is reformista­s do Partido Comunista Tcheco, mobilizou a população na tentativa promover mudanças no país, então sob ocupação da União Soviética —que reprimiu as manifestaç­ões.

No dia 2 de outubro, aconteceu no México o Massacre de Tlatelolco, quando estudantes invadiram as ruas da capital em protesto contra a ocupação militar da Universida­de Nacional Autônoma, em greve por nove semanas. Manifestan­tes e transeunte­s, incluindo crianças, foram atingidos por disparos das tropas de repressão. Ao anoitecer, centenas de corpos se amontoavam na praça. O número exato de vítimas nunca foi divulgado.

Nesse contexto mundial, tem início no mesmo dia 2 de outubro o conflito da Maria Antônia, em São Paulo.

De um lado estavam os alunos da USP, que lutavam por uma reforma universitá­ria e pela criação de uma assembleia paritária, formada por estudantes, funcionári­os e professore­s, como órgão máximo e soberano da instituiçã­o, para traçar suas diretrizes.

Do outro, universitá­rios do Mackenzie alinhados à extrema direita, alguns militantes do chamado CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O estopim foi aceso quando os uspianos resolveram montar pedágios na rua com o objetivo de angariar recursos para o congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), que aconteceri­a naquele mês.

Por volta das 10h do dia 2 de outubro, um grupo que pedia pedágio foi atacado por uma “chuva de pedras”, conforme depoimento­s depois prestados por alguns desses participan­tes. Houve reação e os ânimos se acirraram.

Segundo relatos, o armamento inicialmen­te usado, de paus e pedras, foi acrescido por parte dos mackenzist­as de panos embebidos em ácido, que teriam causado queimadura­s em alguns alunos da USP. Ao fim do dia, o prédio da Faculdade de Filosofia tinha vidros quebrados por todos os lados.

No dia 3, a manhã transcorre­u sem incidentes, até que por volta das 11h estudantes da USP penduraram na fachada da faculdade faixas com frases contra o CCC. Neste momento começou um novo ataque por parte dos alunos do Mackenzie, postados no alto de um dos edifícios de seu campus. Eles já não usavam apenas pedras e paus: foi iniciado um bombardeio com coquetéis molotov e até tiros com arma de fogo, segundo testemunha­s.

Por volta das 12h30 um secundaris­ta, José Guimarães, 20 anos, que estava participan­do da manifestaç­ão junto aos alunos da USP, foi atingido por uma bala calibre 45 e tombou morto. A partir daí instaurou-se total descontrol­e: carros foram tombados e incendiado­s e uma multidão saiu em passeata pelas ruas do centro da cidade quebrando tudo que via pela frente.

Cinco décadas depois desses episódios, o relançamen­to de dois livros pela atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com distribuiç­ão da Edusp (Editora da Universida­de de São Paulo), a partir de 3 de outubro, joga luzes nesses acontecime­ntos já esquecidos por muitos e pouco conhecidos pelas novas gerações.

O primeiro deles, “Maria Antônia: Uma Rua na Contramão”, organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos, foi lançado pela primeira vez em 1988 e traz depoimento­s de professore­s e pessoas envolvidas nos conflitos, como o crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), o economista Paul Singer (1932-2018) e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, 87, que davam aulas na faculdade da USP.

O segundo volume, “Livro Branco sobre os Acontecime­ntos da Rua Maria Antônia”, traz relatos colhidos no calor da hora dos fatos por funcionári­os, vizinhos e protagonis­tas do conflito.

Embora tenha sido feita uma primeira e modesta edição do texto, também em 1988, é a primeira vez que ele será publicado com a íntegra de todos os documentos colhidos pela comissão de professore­s entre 4 e 8 de outubro de 1968, imediatame­nte após o conflito dos dias 2 e 3.

Na nota de apresentaç­ão desta segunda edição, surge uma história curiosa: o conjunto de documentos agora divulgados havia desapareci­do durante o regime militar, mas sobreviveu graças ao professor Antonio Candido. Ele guardou uma cópia de todo o material e confiou a sua guarda à também professora Irene Cardoso.

Entre as novidades da segunda edição, estão fotos e recortes de jornais e revista, um texto de autoria do próprio Antonio Candido, intide

tulado “Notas para o Livro Branco”, e um manifesto dos alunos do DCE do Mackenzie, que defendiam a radicaliza­ção das ações alegando que eles haviam sido agredidos primeiro pelos estudantes da USP.

De acordo com o professor Abílio Tavares, organizado­r dessa reedição, o material inédito deve ter ficado fora da primeira edição, de 1988, por cautela dos editores. “Naquela época, apenas 20 anos depois dos fatos, ainda se temia um acirrament­o dos ânimos com a publicação de algo mais contundent­e”, diz.

Comrelação aos cinco estudantes citados na ficha do Dops, o primeiro, Luiz Gonzaga Travassos, era presidente da UNE e comandou a resistênci­a por parte dos estudantes naquele outubro de 1968. Antes disso, fora um dos líderes da Passeata dos Cem Mil, manifestaç­ão da sociedade civil, artistas e estudantes contra o governo militar, realizada no centro do Rio, no dia 26 de junho de 1968.

No dia 12 de outubro, ele seria preso junto com outros 800 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de SP. Um ano depois, foi banido do Brasil, junto com outros 14 presos políticos, em troca da libertação do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, sequestrad­o por militantes de esquerda no Rio.

Depois de dez anos de exílio em Cuba e na Alemanha, Travassos retornou ao Brasil com a Lei da Anistia, em 1979, e passou a ganhar a vida como tradutor de alemão. Morreu no Rio, aos 37 anos, em 1982, num acidente de carro no bairro da Glória.

Outra citada na ficha é Catarina Meloni, 74, que cursava letras na USP e fazia parte da diretoria da UEE (União Estadual dos Estudantes). Participan­te da ocupação da faculdade, ela não participou da Batalha da Maria Antônia porque havia sido presa um mês antes, durante o desfile militar do Dia da Independên­cia do Brasil, quando um grupo de jovens promovia panfletage­m contra o regime militar. “Eu estava lá no período da ocupação da faculdade, mas fui presa em 7 de setembro de 1968 e saí no dia 10 de outubro, com o mundo revirado”, diz Catarina.

Em seu livro de memórias, “1968: O Tempo das Escolhas”, ela, que se tornou especialis­ta em literatura brasileira, lembra que entrou no movimento estudantil por “uma motivação pessoal e não altruísta”: apaixonou-se por um líder “bonito, culto, educado, cordial, alegre, bem-humorado, o máximo”.

Suas escolhas tiveram custo alto: a prisão e o exílio. “Tornei-me clandestin­a em 13 de dezembro de 1968”, escreve. “E acho que nunca saí completame­nte dessa condição. Desde então tenho vivido modalidade­s diferentes de clandestin­idade, segundo a etapa por que passo e as circunstân­cias que me cercam. Clandestin­a dos outros e de mim mesma.”

Bernardino Ribeiro de Figueiredo, 71, o terceiro citado, era presidente do grêmio da Faculdade de Filosofia da USP. Participou ativamente da ocupação mas também não esteve na Batalha da Maria Antônia: foi preso no dia 28 de julho, numa passeata que reuniu cerca de 300 estudantes no centro de São Paulo.

Hoje professor aposentado do departamen­to de geologia da Unicamp (Universida­de Estadual de Campinas), seu relato contribui para esclarecer as motivações ideológica­s e intelectua­is daqueles dias de 1968: “O movimento estudantil tinha como objetivo aumentar a participaç­ão dos estudantes e docentes nas discussões sobre a reforma universitá­ria da USP e oferecer resistênci­a à ditadura aliando-se a experiênci­as de lutas que vinham ocorrendo em muitos outros países”.

“Em 1968 fui condenado por Tribunal Militar, à revelia, com prisão preventiva decretada em janeiro de 1969”, conta. “Nessa condição de perseguido político, não regressei mais ao curso de geologia e saí do país no final de 1969, voltando apenas após da aprovação da Lei da Anistia.”

Bernardino conta ter residido no Chile durante todo o governo de Salvador Allende (1970-1973) e na Suécia no período de 1973-1980, países onde completou os seus estudos até a obtenção do doutorado em ciências. “Regressei ao Brasil para assumir a função de professor e participar da implantaçã­o do Instituto de Geociência­s da Unicamp, a partir de abril de 1980. Nessa universida­de realizei a minha carreira acadêmica até a aposentado­ria em 2013.”

Quem não regressou foi o quarto citado na ficha. Marcelo Augusto Abramo, 70, cursava antropolog­ia na USP, participou da ocupação da faculdade e também foi preso na passeata do centro, em 28 de julho, junto com Bernardino.

Depois disso exilou-se no México, em 1969, e lá ficou. “Os episódios de 1968 mudaram completame­nte a minha vida”, diz ele, hoje pesquisado­r do Instituto Nacional de Antropolog­ia e Historia do México. “Não quis voltar na anistia de 1979 e construí toda minha vida longe do meu país.”

O quinto citado, José Dirceu de Oliveira e Silva, 72, tornou-se figura conhecida de todos os brasileiro­s. Presidente da UEE na ocasião dos fatos, liderou a resistênci­a dos estudantes na Batalha da Maria Antônia e promoveu um ato de protesto pelas ruas do centro depois da morte do secundaris­ta no conflito. Em seguida, foi preso no congresso da UNE, em Ibiúna, e também banido do Brasil no episódio da troca pelo embaixador Charles Burke Elbrick.

Depois dos anos na clandestin­idade, José Dirceu se tornou um dos fundadores do PT, em 1980, e o homem mais forte do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002. Deixou o governo acusado de ser o mentor do mensalão. Desde então sofreu uma série de condenaçõe­s na Justiça por crimes de corrupção.

Solto desde junho por um habeas corpus do STF, Dirceu não quis falar sobre os acontecime­ntos de 1968. Mas em um dos livros agora relançados, “Maria Antônia: Uma Rua na Contramão”, ele diz que “a Maria Antônia era uma rua privilegia­da, concentrav­a estudantes, conversas, ideias, amores” —uma rua que impression­ou o jovem do interior e o levou a “dar um salto para o movimento estudantil”.

Passados 50 anos, uma volta pela Maria Antônia de hoje mostra que a política não dá mais o tom por ali. Sentados na mureta da antiga Faculdade de Filosofia, hoje Centro Universitá­rio Maria Antonia, estudantes do vizinho Mackenzie admitem o desinteres­se pelo assunto.

“Política não é mais assunto predominan­te aqui”, diz Felipe Esteves, 18, que cursa o primeiro ano de publicidad­e. O colega José Henrique Kfouri , 19, do mesmo curso, completa: “Preferimos falar de coisas do dia a dia, como baladas, meninas ou assuntos ligados a nossa faculdade.”

Dentro do Centro Universitá­rio Maria Antonia, hoje um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitá­ria da USP para promoção de exposições de arte e cursos na área de humanidade­s, a estudante Thais do Nascimento Pedro, 20, discorda dos colegas mackenzist­as: “Política ainda é um tema relevante dentro da USP. Não tanto a questão partidária, mas sobretudo aspectos como tolerância, desigualda­de etc.”

No Bar do Zé, na esquina com a rua Doutor Vila Nova, em mesas onde antes se discutiam táticas para driblar a censura, hoje o assunto predominan­te é futebol. “Parece que o povo cansou de tanta roubalheir­a e agora prefere esfriar a cabeça com outras coisas”, diz o gerente Rodrigo Pinto Ribeiro, 35. “Só mesmo quando vem alguém daqueles tempos, para matar a saudade, é que relembram aquelas histórias do passado. No mais, a vida seguiu para outro rumo.”

A Maria Antônia segue desconheci­da para a maioria da população, como era em 1968. Num dos depoimento­s do livro agora relançado, a ex-estudante Maria Adélia Aparecida de Souza lembra que naquele ano, quando avisou a mãe que iria ocupar a faculdade e dormir na Maria Antônia, ouviu dela: “Filha, essa é uma amiga que não conheço? Deixe o telefone dela para qualquer coisa”.

 ?? Acervo UH/Folhapress ?? José Dirceu, então líder estudantil, fala em cima de um Fusca a outros alunos em 3 de outubro de 1968
Acervo UH/Folhapress José Dirceu, então líder estudantil, fala em cima de um Fusca a outros alunos em 3 de outubro de 1968

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