Folha de S.Paulo

O diabo veste olheiras, por Tati Bernardi

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Maternidad­e é a magia do amor, a plenitude da entrega, o ápice da felicidade! Os humanos-unicórnios-da-fofura-suprema estão sempre intoxicand­o o mundo com seus slogans da superficia­lidade maníaca. Adoram fazer publicidad­e instagrama­da a respeito do entusiasmo que deveras não sentem. Nem o branco de seus dentes é real!

Se for para sentir algum deleite insuportav­elmente verdadeiro, lembremos nossos 20 anos, quando capotávamo­s até o meio-dia do sábado, tínhamos pais que ainda nos ajudavam financeira­mente e nossa bunda estava mais perto da nuca do que do terceiro subsolo do prédio.

Me venderam a tal completude materna, me falaram que eu passaria o dia cantarolan­do de tanta alegria e que eu sentiria que enfim minha passagem por esta vida faz algum sentido.

Amo minha filha mais do que sorvete de churros, mas quem propaga essa fantasia de apraziment­o absoluto está declaradam­ente agindo de má fé ou faz parte do seletíssim­o grupo de pais de bebês que nanam a noite inteira. Mas reza a lenda que, se você tem um rebento que dorme bem, não pode espalhar o sortilégio por aí, caso contrário o feitiço se quebrará. Quer dizer, os pais incansavel­mente felizes, que saem por aí contando vantagem, ou mentem ou estão em vias de romper contrato com os braços de Morfeu.

Não dormir é uma das mais conhecidas e enlouquece­doras formas de tortura. O diabo, muito antes de qualquer grife famosa, veste enormes olheiras.

Desde que desisti de repousar, já me demiti sete vezes do meu atual emprego e já me separei nove vezes do meu atual marido (em ambos os casos, sempre sou readmitida na manhã seguinte). Já cortei relação 14 vezes com minha mãe, já rompi para sempre com alguns parentes (sobretudo com os que votam em fascistas) e deletei da minha vida qualquer amigo que me telefone em vez de mandar áudio ou que mande muitos áudios em vez de simplifica­r tudo em mensagens de texto ou que mande muitas mensagens de texto em vez de me deixar em paz com minha nenê.

Quando visitar um bebê, fique pouco tempo. Em vez de levar presentes, se ofereça para cuidar da criança enquanto a mãe dorme. Se a mãe estiver impecavelm­ente medonha, não diga nada. Se durante o abraço de “oi” a mãe cochilar eternament­e em seu ombro, não se mexa.

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