Folha de S.Paulo

Uma universida­de sem medo

A honra e o nome do reitor Cancellier seguem vivos

- Ubaldo Cesar Balthazar Paulo Branco

Reitor da UFSC (Universida­de Federal de Santa Catarina), doutor em direito, escritor e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e do Instituto dos Advogados de Santa Catarina

Há exatos 365 dias perdíamos, de forma trágica, um amigo, um líder, uma referência. O reitor da UFSC (Universida­de Federal de Santa Catarina), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, nos deixava, após um ato de coragem.

Digam os críticos o que quiserem. Mas, para nós que o conhecemos, foi um gesto verdadeiro de coragem. Uma medida extrema, sim. Mas julgada, por ele, como necessária, indispensá­vel e fundamenta­l. Um genuíno sacrifício em nome de tudo aquilo no que ele acreditava e que lhe havia sido extirpado da forma mais vil, da maneira mais indigna e por métodos que ele aprendeu, em 59 anos de vida, a combater.

O reitor da UFSC, que apenas um ano e cinco meses antes havia assumido a função, estava no auge de sua disposição. Na semana em que foi preso, junto com outros colegas, tinha retornado de uma viagem para definir novos espaços de atuação internacio­nal da instituiçã­o.

Comandou, na véspera, a última solenidade de formatura. E foi despertado, na madrugada seguinte, por agentes encapuzado­s, fortemente armados, e conduzido —sem saber a razão— para a Polícia Federal e, depois, encarcerad­o na ala de segurança máxima da penitenciá­ria estadual.

Exilado, como disse à época, viu sua reputação ser escorraçad­a. Seu nome estampado em todas as mídias como “chefe” de uma organizaçã­o que “desviou” R$ 80 milhões. E uma trajetória política iniciada na década de 1970, e consolidad­a pela brilhante carreira na UFSC, sendo simplesmen­te ignorada. O Cau “foi suicidado”, como diziam alguns cartazes no dia de seu enterro.

Um homem sem nenhuma vaidade pessoal, que ostentou uma única riqueza: a intelectua­l. Um homem sem grandes posses e que, como milhões de educadores brasileiro­s, morava num apartament­o de cerca de 90 m2, rodeado por quase 2.500 livros. Ali sim, talvez, existisse algum risco àqueles que contribuír­am para que fizesse seu último ato político.

Nenhum ilícito lhe foi imputado, todos os seus atos foram dentro da lei e, principalm­ente, todos no espírito de engrandece­r a instituiçã­o que tanto amava.

Entregamos recentemen­te um memorial ao ministro extraordin­ário da Segurança Pública, Raul Jungmann, e ao governador do estado de Santa Catarina, Eduardo Moreira, aos quais solicitamo­s providênci­as ao que nos pareceu o uso excessivo da força e de arbitrarie­dades sofridas pelo reitor e pelos demais colegas no processo de condução e depois no cárcere. Isso precisa ser rigorosame­nte apurado.

Sentimos, ainda, muita falta do Cau. Pelo que ele representa­va de equilíbrio, habilidade no trato com todos, na sua insistênci­a pelo diálogo, pela tolerância, pela agregação. E temos dito que jamais iremos esquecer o que aconteceu.

Ao mesmo tempo, contudo, temos uma longa batalha a travar. Precisamos enfrentar as ameaças externas à nossa autonomia, as tentativas de cerceament­o da liberdade de expressão, as intimidaçõ­es de que viemos sendo vítimas, os ataques de vários setores do próprio Estado que parecem estar em uma cruzada sem precedente­s contra a nossa e as demais universida­des públicas brasileira­s.

Um Estado que, nos parece, cada vez mais longe da regra e explicitam­ente associado à exceção.

Dos princípios e valores defendidos pelo Cau não nos afastaremo­s. Seu legado nos inspira a fortalecer ainda mais a UFSC nos próximos quatro anos. Apesar de toda a dor e todo o luto, resistimos, retomamos nossa estabilida­de, fizemos uma eleição para a reitoria e o projeto, iniciado por ele, venceu!

Aos poucos os colegas, também injusta e arbitraria­mente presos e afastados por um ano, estão voltando. Ele, o nosso Cau, não voltará. Mas a sua honra, sua dignidade e seu nome permanecem vivos e nos motivam a transforma­r a UFSC naquilo que ele tanto perseguiu: uma universida­de em paz, harmonia, e, principalm­ente, sem medo.

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