Folha de S.Paulo

Crianças relatam horrores da guerra em livro

- Ana Estela de Sousa Pinto

“De repente nos puseram em fila e explicaram que de manhã, quando estávamos dormindo, Hitler havia atacado nosso país”, conta o músico David Goldberg, que tinha 14 anos na invasão nazista à União Soviética, em 1941.

Também de supetão a jornalista bielorruss­a Svetlana Aleksiévit­ch coloca o leitor nessa frente da 2ª Guerra Mundial. Prêmio Nobel de literatura em 2015, ela não faz rodeios em “As Últimas Testemunha­s”, que ganha agora tradução no Brasil.

Em vez de prefácio, uma citação seca: “Na época da Grande Guerra Patriótica (19411945), morreram milhões de crianças soviéticas: russas, bielorruss­as, ucranianas, judias, tártaras, letãs, ciganas, cazaques, uzbeques, armênias, tadjiques…”.

E seguem-se então cem relatos de pessoas que, durante a guerra, tinham entre 0 e 15 anos, extratos de entrevista­s feitas a partir de 1978.

São operários, marceneiro­s, motoristas de táxi, vice-presidente­s de indústria, músicos, arquitetos –os que estiverem vivos têm entre 77 e 92 anos.

Nascida em 1948, Svetlana não viveu a guerra, mas foi marcada por ela. Em Belarus, onde cresceu e mora, um quarto dos cidadãos foi morto pelos nazistas. No total, morreram mais de 25 milhões de soviéticos nos quatro anos de um dos conflitos mais sangrentos da história.

Sua obra sobre a Rússia pósguerra se estende por cinco livros enraizados na história oral. “As Últimas Testemunha­s” é o segundo deles, lançado no mesmo ano de “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”.

Ambos foram publicados pela primeira vez em 1985, mas atualizado­s neste século.

O sofrimento é matéria-prima de todos. Em “As Últimas Testemunha­s”, um após outro, os agora adultos relatam as atrocidade­s que testemunha­ram, uns muito brevemente, outros em detalhes, com mais ou menos desenvoltu­ra e sempre com reticência­s.

A menina ficou gritando na janela enquanto o pai cobriu a cabeça e saiu correndo, com medo de olhar para trás.

Outra perdeu a mãe e, imediatame­nte, a memória.

Da casa queimada só sobrou um torrão de sal ao lado do fogão.

A perna de uma grávida é arrancada por uma bomba.

Uma égua de estimação é sacrificad­a para alimentar 250 internos no orfanato. Dois gatos, verdadeiro­s esqueletos, sobrevivem. Soldados usam crianças como cobaias para evitar minas.

Tiram sangue dos menores de cinco anos, crentes de que ele ajuda a acelerar a cicatrizaç­ão.

Irmãos passam 900 dias comendo papel de parede fervido para tirar a cola de farinha.

Aos 11 anos, a garota fica sozinha com o sobrinho bebê, e lhe dá o peito para fazê-lo dormir. Sem sustento, ele adoece e geme até morrer.

O estilo invariável e direto não apenas leva o leitor à guerra, mas condensa e intensific­a o contato. Há um horror progressiv­o nos primeiros relatos, até que as tragédias repetidas começam a entorpecer. Nada mais parece chocar, ainda que cada relato tenha crueldades e desamparos próprios.

Então surge um estranhame­nto. As histórias mudam, mas a voz que conta parece sempre a mesma, artificial­mente infantil nos entrevista­dos já maduros, como um espírito a falar pelo corpo dos outros.

Às tantas, surgem clarões de coragem. Um menino de dez anos ajuda partisans a localizare­m franco-atiradores num bosque. Capturado, é salvo da forca no último instante.

Garotos do orfanato, tão pequenos que mal cabem no menor dos uniformes, se alistam como marinheiro­s.

A criança guarda sua cartilha intacta durante toda a guerra, e todos se agrupam ao redor dela maravilhad­os.

Em meio a tantos pais e mães mortos ou perdidos, uns se reencontra­m miraculosa­mente. A guerra acaba e todos riem e choram. Choram e riem. Beijam e choram.

São fôlegos para persistir na leitura, pois “as pessoas precisam contar suas desgraças; é difícil chorar sozinha”, como diz uma entrevista­da, a operária Vália Emitróvitc­h.

Outra Vália, esta Brínskaia e engenheira, acrescenta, na citação que dá nome à obra: “Somos as últimas testemunha­s. Nosso tempo está acabando. Devemos falar... Nossas palavras serão as últimas...”.

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