Folha de S.Paulo

Em cidade de militares mortos no Rio, farda é opção a pobreza e desemprego

Agentes mortos na intervençã­o eram de Japeri (RJ), que tem 6ª maior taxa de homicídio do país

- Júlia Barbon Fotos Ian Cheibub/Folhapress

Enquanto o Rio de Janeiro se afasta, a paisagem se transforma. Construçõe­s formais dão lugar a casas de madeira e tijolos à mostra, asfalto em algumas ruas vira terra, e carros são substituíd­os por carroças e cavalos.

Era o percurso que Fabiano Santos, 36, e João Viktor da Silva, 21, faziam todos os dias entre trabalho e casa antes de ficarem conhecidos como os primeiros militares mortos em confronto durante a intervençã­o federal na segurança pública do estado, em vigor desde fevereiro.

O cabo e o soldado do Exército não se conheciam, mas além das coincidênc­ias na morte (ambos foram baleados numa operação em favelas da zona norte do Rio em agosto), tinham em comum o fato de terem nascido e crescido na cidade de Japeri.

Cerca de 60 km separam a capital fluminense do município de 104 mil habitantes na região metropolit­ana, que tem um prefeito preso, acumula alguns dos piores índices do estado e do país e onde a farda é uma das poucas alternativ­as à pobreza e ao desemprego.

Só 6% da população economicam­ente ativa de Japeri trabalha, a porcentage­m mais baixa do RJ, segundo dados de 2016 do IBGE. No mesmo ano, a cidade registrou a sexta maior taxa de homicídios em todo o Brasil (95,5) entre os municípios com mais de 100 mil habitantes.

“É o melhor caminho que tem, aqui fora não tem nada bom”, diz Edson de Oliveira, 49, tio do cabo Fabiano, referindo-se à carreira militar.

As Forças Armadas foram a opção de cinco homens da família, exceto um. Edson atuou na Marinha por 30 anos e atualmente é da reserva.

Apesar de considerar que é respeitado na vizinhança pela função, ele reforça que toma cuidados. “Não me exponho muito, não. Evitava chegar fardado e hoje muitas vezes deixo a identidade [militar] em casa”, conta.

A cautela se justifica pelo contexto de violência da área. Assim como o resto da região da Baixada Fluminense, Japeri teve uma escalada de crimes nos últimos anos, sendo um dos motivos citados por especialis­tas a migração de traficante­s da capital após o início do programa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificado­ra).

Três facções criminosas disputam o controle do tráfico no município: o Terceiro Comando Puro, a Amigo dos Amigos e o Comando Vermelho. Nos últimos meses, com a prisão de chefes do tráfico, a guerra entre esses grupos se acirrou em alguns bairros, com tiroteios frequentes. As milícias, porém, comuns na Baixada, são inexpressi­vas na cidade.

Os roubos de carga são outro problema, já que Japeri é cortada pela estrada do Arco Metropolit­ano do RJ, que faz ligação com a rodovia Presidente Dutra, a principal ligação do Rio com São Paulo.

“Normalment­e são roubos violentos, não é incomum portarem fuzis”, afirma Júlio Fi- lho, titular da delegacia local.

“Aqui, quando as crianças brincam de polícia e ladrão, querem ser o ladrão”, conta Josimar de Souza, 45, 2º sargento do Exército na área de tecnologia. No tempo livre, ele dá aula de informátic­a para jovens do município em um projeto voluntário evangelist­a.

“Às vezes oriento eles a seguir a carreira militar, avisamos quando vai ter concurso. Muitos querem isso, porque o jovem não encontra emprego aqui. É uma oportunida­de”, afirma ele, que se alistou quando tinha 17 anos.

Quando decidiu cursar uma pós-graduação em ciência e tecnologia no Rio, conta ele, saía de casa cedinho para trabalhar e só chegava em casa à meia-noite, depois da aula. O problema era quando perdia o ônibus e o trem e tinha que passar a madrugada na rua.

Japeri fica no fim da linha ferroviári­a que parte do centro da capital, percurso que leva cerca de uma hora e meia.

Cerca de 70% do município é rural, e a internet só chegou mesmo há uns dois ou três anos, dizem moradores, mas ainda assim não funciona em todos os lugares.

“Aqui o acesso à escola é cruel, os jovens não têm opção”, diz Esdras da Silva, 33, presidente da federação de associaçõe­s de moradores de Japeri (Fameja). Mais da metade das crianças ali são vulnerávei­s à pobreza, segundo o Atlas da Violência 2018, e nem um terço dos maiores de 18 anos tinham ensino médio completo em 2013, segundo a ONU.

A cidade tem ainda outra particular­idade: o prefeito, Carlos Moraes, e o presidente da Câmara Municipal, Wesley George de Oliveira, além do vereador Claudio José da Silva (todos do PP), foram presos há dois meses e denunciado­s por suspeita de associação ao tráfico de drogas. Procurada, a defesa deles não quis se pronunciar.

Moraes, que estava em seu terceiro mandato e foi gravado prometendo ajuda ao chefe do tráfico local, foi um dos “pais” de Japeri em 1991, quando articulou sua emancipaçã­o do município de Nova Iguaçu e se tornou o primeiro prefeito da cidade.

Para Henrique Silveira, geógrafo e coordenado­r-executivo da Casa Fluminense, rede que atua para reduzir desigualda­des na região metropolit­ana do Rio, o fato é simbólico. “A relação entre violência e poder, crime e política, sempre foi uma marca da Baixada”, afirma.

A intervençã­o federal no Rio termina em 31 de dezembro. O governo federal precisa ainda decidir se mantém o poder de polícia dado às Forças Armadas atuarem nas ruas do estado, prazo que também vence no final deste ano.

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O sargento Josimar de Souza, que leciona a jovens em Japeri
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Edson de Oliveira, militar da reserva, tio de cabo morto
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Esdras da Silva, líder de associação de moradores da cidade

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