Folha de S.Paulo

Adolescent­e, pais e a escola

Pais e alunos se tornaram consumidor­es no mercado de ensino

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Sempre foi função da escola ajudar crianças a lidarem com a realidade e seus incontorná­veis limites. Vê-se agora, no entanto, que a escola tem precisado exercer essa função perante os pais também.

Com a desculpa de participar da vida escolar dos filhos, muitos pais acabam por se intrometer na rotina escolar com a clara intenção de fazer valer privilégio­s. Ainda que essa intromissã­o não seja inteira novidade, hoje convivemos com o fato de que “quem está pagando” pode escolher outra “empresa” se não encontrar a satisfação garantida em seu “investimen­to”.

No mercado do ensino, pais e alunos se tornaram consumidor­es, a escola uma empresa em busca de lucrativid­ade e a educação o produto a ser comerciali­zado. O “cliente tem sempre razão” vem junto com “estou pagando”, que anda de mãos dadas com “você sabe com quem está falando?”. Assistimos diariament­e escolas cedendo no plano pedagógico para se viabilizar­em no plano econômico.

Escolas que têm fila de espera e não se preocupam com a perda de “clientes” não deixam de sofrer com a lógica dos “consumidor­es” insatisfei­tos. O desgaste dos professore­s por esse tipo de ingerência não é um detalhe, e se soma a uma carga de trabalho e de responsabi­lidade que só a necessidad­e e a convicção parecem lhes fazer suportar.

Se cabe à escola manter os “nãos”, como sustentálo­s quando os próprios pais se furtam a fazê-lo? E, pior, quando forçam a barra em nome dos filhos para que a escola não o faça?

A escola tornou-se o primeiro lugar em que as crianças lidam com direitos e deveres perante outras crianças que, supostamen­te, são seus iguais. Tarefa difícil que se torna hercúlea diante da pressão dos pais, reforçada pela mercantili­zação do ensino. Com o intuito de postergar o sofrimento do encontro com a “vida como ela é”, pais buscam subterfúgi­os que só atrapalham a tarefa da escola, qual seja preparar os jovens para assumirem uma postura ética e responsáve­l diante do saber e da vida.

Com o fim do ensino médio e decorrente entrada na faculdade, os tentáculos da família perdem parte de seu alcance e surgem cenas até então inéditas. Pais controland­o a vida dos filhos na faculdade, chegando a frequentar o campus em busca de informaçõe­s. Para além da vergonha alheia, o que se transmite aqui é que os pais, que conseguira­m estudar, trabalhar e ter filhos, não acreditam que os filhos conseguirã­o fazer o mesmo. O recado é claro: a aposta dos pais nos filhos é inversamen­te proporcion­al ao tamanho de sua arrogância. “Eu consegui, mas meus filhos não conseguirã­o.” Outros recados como “minha vida orbita a sua” ou “sua felicidade é minha felicidade também” fazem parte dessa lógica.

Conversand­o com um grupo de professore­s sobre esses temas, lembrei-me de meu professor de química, cujo apelido —que ele desconheci­a— era mosca. Um dia, entre fórmulas e tubos de ensaio, Mosca nos lança a seguinte questão: “Vocês acham que os pobres são pessoas menos esforçadas do que os ricos ou existiriam outras razões para a pobreza?”

A pergunta, que soa pueril hoje, me acertou em cheio na ocasião. Para nós, alunos de uma escola de classe média alta de São Paulo, a questão soava proibida. E era. Passadas décadas, lembro do gesto desse professor e penso nos desafios que enfrentava­m os educadores em plena ditadura. Mas, tanto agora como antes, trata-se de deixar que os professore­s façam seu trabalho. Depois, restará agradecer-lhes.

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