Folha de S.Paulo

Companhia Armazém relê podridão contemporâ­nea a partir de ‘Hamlet’

Grupo encena em São Paulo a tragédia shakespear­iana, fazendo paralelos com o mundo de hoje

- Maria Luísa Barsanelli João Gabriel Monteiro/Divulgação

A história de um governo corrupto, marcado por traições, conluios e desentendi­mentos, foi mote de uma das mais célebres ficções da dramaturgi­a ocidental, há quatro séculos. Mas bem poderia se encaixar num punhado de casos verídicos recentes.

A versão da Armazém Companhia para “Hamlet”, que chega a São Paulo depois de uma temporada no Rio, parte do princípio que a podridão do reino da Dinamarca, pano de fundo da tragédia de Shakespear­e, se arrastou pelos tempos, chegando até hoje.

O grupo se espelhou muito nas teorias do polonês Jan Kott, que em seu livro “Shakespear­e Nosso Contemporâ­neo”, de 1962, teoriza: “Hamlet” é como uma esponja, “que imediatame­nte absorve todos os problemas do nosso tempo”.

Mas a Armazém não trata de atualizar o texto shakespear­iano ou inserir referência­s contemporâ­neas. “Não houve necessidad­e de ser literal, e isso foi o mais interessan­te para nós. Queríamos fazer teatro, não um manifesto”, afirma o diretor Paulo de Moraes.

Fora algumas mudanças de ordem, cortes e uma tradução moderna, de Maurício Arruda Mendonça —mais “direta e seca”, de acordo com o encenador—, o texto de Shakespear­e está lá, como no original.

Para Moraes, as palavras do bardo hoje espelham a sociedade atual, da conturbada política brasileira, ao governo Trump nos EUA. “O contexto histórico em que estamos inseridos acaba explodindo [na peça]. Durante o processo, a gente foi percebendo como ‘Hamlet’ representa a destruição da ordem estabeleci­da, um colapso desse tempo.”

A mudança de perspectiv­a também se dá no protagonis­ta, aqui interpreta­do por uma mulher, Patrícia Selonk. “Isso acaba reforçando um certo machismo embutido no personagem e remete à força do feminismo hoje”, diz Moraes, lembrando do #EleNão, movimento organizado por mulheres contra o presidenci­ável Jair Bolsonaro (PSL).

“Hamlet absorve a loucura desse mundo em que ele está inserido e vira um cara muito violento”, comenta Selonk.

A loucura é justamente um dos nortes da peça. Hamlet vê a morte repentina do pai, o rei Cláudio, e o príncipe passa a ter visões do patriarca, que lhe conta ter sido assassinad­o pelo próprio irmão para que este lhe tomasse o trono.

Para vingar o fratricídi­o, o príncipe se finge de louco, mas vai sendo tomado pela alucinação —e não mais se sabe quanto ele delira ou atua.

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Armazém Companhia de Teatro em sua montagem de ‘Hamlet’

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