Folha de S.Paulo

Autor mergulha na loucura junto com seus protagonis­tas

Entre os títulos menos conhecidos do americano Philip K. Dick, ‘Espere Agora pelo Ano Passado’ ganha primeira edição brasileira

- Divulgação Antônio Xerxenesky

A reavaliaçã­o da obra do americano Philip K. Dick ocorre há décadas. Dick morreu em 1982, sem usufruir da fama que uma adaptação cinematogr­áfica, “Blade Runner”, lhe traria. Aos poucos, seu nome foi saindo do nicho da ficção científica e seus romances — mais de 40— passaram a ser lidos nas universida­des.

O maior ponto de virada foi em 2007, quando a prestigios­a Library of America passou a publicar sua obra nos Estados Unidos, tornando-o, portanto, membro do cânone ocidental.

No Brasil, a redescober­ta de Dick passou pelas novas edições da Editora Aleph de seus principais livros —“Ubik”, “O Homem no Castelo Alto”, “VALIS”. Dando continuida­de ao projeto, a Suma das Letras vem lançando obras menos conhecidas, como o ótimo “O Tempo Desconjunt­ado” e este “Espere Agora pelo Ano Passado”.

A trama estapafúrd­ia é de difícil descrição: num futuro distante, Eric Sweetscent é um especialis­ta em órgãos artificiai­s contratado para manter homens poderosos vivos pelo tempo que quiserem.

Começa ajudando um sujeito obcecado pela reconstruç­ão da Washington de sua infância, de 1935, e depois passa a servir o chefe das Nações Unidas, envolvido numa guerra entre dois planetas, cujos vilões são criaturas insectoide­s.

Até aí, estamos num terreno típico da ficção científica. O “fator K. Dick” encontra-se no fato de que a ênfase da narrativa não reside na ação, isto é, na guerra alienígena, e sim na relação entre Eric e sua esposa, viciada numa nova droga alucinógen­a, JJ-180.

Como seus biógrafos notaram —entre eles o romancista francês Emmanuel Carrère —, K. Dick costumava transpor para a ficção suas infelicida­des matrimonia­is e a constante tentação do suicídio.

O autor saltava de uma esposa para outra, que logo se revelava para ele um monstro controlado­r. O resultado é uma misoginia latente em livros como esse. Por sua vez, o conflito bélico incompreen­sível e crescente entre duas entidades distantes parece um reflexo da Guerra do Vietnã que ocorria na época da escrita do romance (1963).

O enredo avança aos solavancos na primeira metade, dando a impressão de não ter rumo ou uma estrutura sólida por trás. No entanto, pela metade do livro, quando descobre-se que a droga JJ-180 arremessa os usuários para o passado ou para o futuro, K. Dick mergulha, junto com os protagonis­tas, na loucura.

É nesse modo desregrado que o autor mostra o que tem de mais único —a sua habilidade em elaborar uma narrativa imprevisív­el, a partir de uma nova lógica (ou da falta de uma).

Como Thomas Pynchon — outro americano obcecado por drogas, paranoia governamen­tal e manipulaçõ­es temporais—, K. Dick dinamita a relação de causa e efeito: o resultado não é harmônico, mas não deixa de ser interessan­te.

Na década de 1960, K. Dick escreveu de forma frenética, produzindo mais de vinte romances e outros vários contos. A qualidade, portanto, oscila bastante, e “Espere Agora pelo Ano Passado” não figura entre os seus trabalhos mais refinados; muitas ideias são desenvolvi­das de forma mais inteligent­e em outro momento —a tecnologia usada a favor da nostalgia em “O Homem do Castelo Alto”, drogas alucinógen­as mudando de forma irreversív­el a realidade em “Três Estigmas para Palmer Eldritch”.

Ainda assim, a loucura do romance é cativante —embora talvez não para todos, exceto os já familiariz­ados com o autor.

Autor costumava transpor para a ficção suas infelicida­des matrimonia­is e a tentação do suicídio. O autor saltava de uma esposa para outra, que logo se revelava para ele um monstro controlado­r. O resultado é uma misoginia latente

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O autor americano Philip K. Dick

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