Folha de S.Paulo

A inovação política que emerge nas periferias

Resultados do 1º turno reforçam nova configuraç­ão

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Maria Alice Setubal, Beatriz Pedreira e Jéssica Cerqueira Socióloga e educadora; doutora em psicologia da educação, preside os conselhos da Fundação Tide Setubal e do GIFE; fundadora e membro do conselho do Cenpec Cientista social, cofundador­a e diretora do núcleo de inteligênc­ia do Instituto Update Turismólog­a e pesquisado­ra do Instituto Update; produtora cultural, gestora de projetos e educadora popular

A sociedade brasileira é desigual, e nos grandes centros urbanos é possível enxergá-la a olho nu; basta ver o descompass­o entre os centros urbanos e as periferias, que revelam uma realidade fragmentad­a. Mudar as narrativas e abrir espaço para a escuta e o diálogo são os primeiros passos para enfrentar os desafios dessas distorções. Nesse sentido, cidadãos, empresas e organizaçõ­es da sociedade civil devem unirse na busca por soluções conjuntas. Essa é a nossa proposta como autoras deste artigo.

Esse foi também o percurso da pesquisa Emergência Política Periferias, realizada pelo Instituto Update, com apoio das fundações Tide Setubal e Ford, em São Paulo, Recife, Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Cinco pesquisado­res que atuam a partir das periferias percorrera­m essas cidades conhecendo histórias de pessoas e território­s que estão fazendo a política do dia a dia, para além dos partidos.

Responsáve­is por produzir e propor a inovação, essas pessoas, nomeadas na pesquisa como fazedores, estão nos território­s periférico­s, mas também se deslocam, produzem soluções e inovações a partir da circulação, do intercâmbi­o com outras regiões e do acesso ao ensino superior, impulsiona­do por políticas públicas promovidas no campo da educação.

Os fazedores ensaiam uma sociedade, colocando em prática soluções que são construída­s de modo a atingir e acessar os direitos constituci­onais, muitas vezes negados pelo Estado. São laboratóri­os que criam, transforma­m e ressignifi­cam o direito à existência, à economia e ao bem viver, à memória e à cultura, à participaç­ão política e à ocupação de poder.

Emergem nas favelas iniciativa­s que resgatam raízes, valorizam identidade­s, pautam debates e articulam políticas públicas. Combatem transfobia, machismo, racismo e atuam pela inclusão e participaç­ão de pessoas, excluídas da política e tornadas invisíveis pela sociedade.

A maioria das iniciativa­s identifica­das tem na participaç­ão de mulheres negras um traço em comum. Ao fazer política, elas movem todas as estruturas e, ao valorizá-las, avançamos e aprofundam­os a democracia. A pesquisa revelou que a inovação política é mulher, negra e periférica. Marielle simboliza e traduz essa experiênci­a.

Os resultados do primeiro turno reforçam essa ocupação política com a eleição de uma mulher indígena na Câmara, duas negras para o Congresso Nacional e três assessoras da vereadora Marielle Franco, no Rio. Há exemplos também nas assembleia­s mineira e paulista.

Todos esses dados reforçam que a periferia está ocupando cada vez mais o seu direito de legislar, a partir da visão e da experiênci­a de quem pertence a esses território­s.

Existem inúmeros desafios para os fazedores. São necessário­s apoio e investimen­to nessas inovações políticas, estimuland­o e gerando conexões, fortalecen­do os território­s em suas potências, com recursos para o seu desenvolvi­mento e diálogo para a criação de políticas públicas pautadas pelas periferias.

Essas constataçõ­es chegam em meio à corrida eleitoral, na qual muito se fala de riscos à democracia e de desconfian­ça da população com a política tradiciona­l.

É preciso deslocar-se e promover deslocamen­tos. Construir pontes, por meio do encontro, mesmo que as fronteiras existam, atravessan­do-as com respeito, diversidad­e e transparên­cia.

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