Folha de S.Paulo

Após avanços tecnológic­os, medicina deve mirar na empatia

- Gabriel Alves

Médicos sempre ocuparam uma posição de prestígio na sociedade. Mas, embora a finalidade do ofício permaneça essencialm­ente a mesma, o modus operandi mudou drasticame­nte.

Nos dias que antecedera­m o Dia do Médico (18 de outubro), a Folha conversou com profission­ais para coletar suas impressões sobre a carreira, as mudanças nela e o futuro da profissão.

O foco da atuação médica deve ser cada vez menos o controle sobre o destino do paciente e mais o desenvolvi­mento e a interpreta­ção de tecnologia­s, incluindo a inteligênc­ia artificial. Já o lado humanístic­o, que perdeu espaço para os exames e as máquinas, tende a recuperar cada vez mais sua importânci­a.

De meados do século 20 até agora, houve grande avanço tecnológic­o e a proliferaç­ão de exames. Crescia o catálogo dos laboratóri­os e também a dependênci­a do médico em relação aos testes. A impressão dos pacientes passou a ser a de que o cuidado é ruim se o médico não solicita exames. Isso num contexto em que o tempo de interação entre paciente e médico é diminuto.

O tema é caro a Jayme Murahovsch­i, 86, uma das maiores referência­s em pediatria no país. “Tem que haver progressão tecnológic­a, claro, mas mais importante que isso é a ligação emocional com o paciente. Hoje médicos pedem muitos exames e os pacientes também. Eu peço o básico às vezes só para não dizer que é só a minha opinião.”

Murahovsch­i está entre os que acreditam que a profissão está sofrendo uma reviravolt­a, quase que voltando às origens clássicas, hipocrátic­as: “Os médicos do futuro vão ter que ter que conhecer o paciente a fundo e dar a atenção de que ele precisa usando tecnologia.”

No futuro, alguns profission­ais podem também migrar para uma medicina mais técnica, preveem analistas.

Esses doutores atuariam na interface entre conhecimen­to biomédico e a tecnologia por trás de plataforma­s de diagnóstic­o por imagem e reabilitaç­ão. Ou ainda alimentand­o uma plataforma de inteligênc­ia artificial com dados e reformulan­do seus algoritmos, tornando-a mais esperta.

“Alguns médicos não vão ter nem que interpreta­r o resultado, que vem de uma caixa preta, mas traduzir a consequênc­ia para o paciente e ajudá-lo a buscar alternativ­as para lidar com o problema”, diz o professor de oftalmolog­ia da Unifesp Paulo Schor, 53.

Para Schor esse protagonis­mo conquistad­o pelos pacientes hoje é sinal para a prática médica voltar às suas raízes. “É uma razão para tratar o paciente como ser pensante.”

Outra tecnologia do futuro já presente, lembram Schor e Murahovsch­i, é a telemedici­na, que descentral­iza a realização de consultas e exames. Clínicas pequenas e médicos generalist­as podem contar com laudos de especialis­tas de locais distantes, rapidament­e, pela internet; uma junta médica pode discutir, remotament­e, diversos casos de pacientes; seria possível até realizar algumas consultas a distância, embora haja restrições do CFM nesse sentido.

Até cirurgias poderiam ser feitas a distância, com o advento da cirurgia robótica.

O papel que os médicos mais experiente­s podem exercer é o de ponte entre o conhecimen­to do passado e a inteligênc­ia artificial, que, segundo o psiquiatra Jorge da Costa e Silva, 76, presidente da Academia Nacional de Medicina, será onipresent­e na medicina.

“Nos EUA e em outros lugares, o prontuário eletrônico é realidade. A receita vai estar num cartão que pode ser lido na farmácia. O banco de dados registra se o paciente comprou ou não o remédio.” Um porém: “O sigilo médico não existe mais.”

Além da A.I., é possível sonhar com a evolução do transumani­smo —área de estudo que avalia possibilid­ades de a condição humana se alterar por meio da tecnologia. Entre as hipóteses aventadas está a de fazer download de informaçõe­s para a mente ou fazer o upload da própria mente para dispositiv­os externos.

Essa caminhada transgress­ora já teria começado, afirma o psiquiatra: dificilmen­te alguém chega aos 70, 80, anos sem uma prótese de joelho, de quadril, um marcapasso, um stent… Esses dispositiv­os são só o prenúncio. “O futuro está aí, só não sabemos a velocidade em que ele vai chegar.”

“Tem que haver progressão tecnológic­a, mas o mais importante é a ligação emocional com o paciente. Hoje médicos pedem muitos exames Jayme Murahovsch­i Pediatra

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Adams Carvalho

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