Folha de S.Paulo

o poder da medusa

Depois de elevar o status de sua grife ao ápice, Donatella Versace a vendeu por R$ 8 bilhões; em entrevista, ela revê trajetória de 20 anos na marca e fala sobre sua ligação com a cultura pop

- Pedro Diniz

Meio monstro, meio deusa, conta-se que Medusa petrificav­a os homens que a olhavam nos olhos. Sua cabeça, na mitologia grega cortada por Perseu, virou amuleto contra o mal na Grécia Antiga, símbolo feminista nos 1970 e, nos últimos 12 meses, alvo dos holofotes da cultura pop.

Protagonis­ta de uma odisseia particular para manter a relevância de seu sobrenome, Donatella Versace, 63, personific­ação da Medusa, só que com cabelos platinados, varreu as dúvidas sobre o poder de fogo de seu clã Versace.

Em setembro de 2017, a estilista italiana capitaneou a volta das supermodel­os à passarela e viu, um ano depois, parte de sua história levar cinco estatuetas do Emmy. Dias antes, deixou o mundo da moda petrificad­o ao anunciar a venda da marca por R$ 8 bilhões.

É fácil relacionar a figura de Donatella com a do personagem fictício que é o logo da marca fundada por seu irmão Gianni, estilista morto em 1997 e centro da premiada série “O Assassinat­o de Gianni Versace” (FX).

Incompreen­dida pela indústria quando teve de assumir sozinha a direção criativa da etiqueta e desprezada por parte dos fãs da estética sexualizad­a pela qual a Versace ficou reconhecid­a, Donatella ainda teve sua cabeça colocada à prêmio pela onda conservado­ra do final dos 1990, a qual respondeu com dedos de tecido a mais e cartela mais sóbria que a explosão de estampas propagada pelo fundador.

“No começo, tinha receio de chegar perto dos nossos arquivos, ou mesmo usá-los para inspiração, porque tinha medo que dissessem ‘olha, ela está copiando o irmão’. Tentei fazer diferente, às vezes me afastando do nosso DNA. Algumas coisas funcionara­m, outras não. Mas tudo bem, é a vida”, desabafa Donatella, em entrevista à Folha.

Seus medos eram justificad­os. Antes do tiro que matou Versace, ela era espécie de alter ego feminino do estilista, um manequim dos decotes, das fendas e das coxas à mostra. Na cadeira de chefe, era ou assumir o lado fatal da Medusa ou o outro, de emblema do feminismo no século 20. Sob críticas, preferiu a segunda opção.

A estilista costumava fugir de comentar sobre o assassinat­o do irmão e de rememorar seu legado porque, Donatella sabe, precisa seguir em frente para a marca não mofar. Contudo, não se exime de afirmar que guarda muitas lembranças do irmão, porque são dele “as memórias mais importante­s” de sua vida.

“Gianni foi minha educação, na moda e na vida, e as memórias sempre estarão comigo. Mas nunca gostei de olhar pra trás e meu irmão também não iria querer que eu olhasse”, diz.

Até a série sobre o assassinat­o do designer ela tratou de descredita­r, deixando claro que não havia participad­o de nenhuma parte da produção. Isso, claro, só aumentou o hype da etiqueta e deu gás ao renascimen­to da Versace, fato que culminou em sua compra pela Michael Kors Holdings (leia mais na pág. c3), durante a semana de moda de Milão, em setembro.

“Sempre fomos uma marca pioneira na cultura pop, na música, nos movimentos juvenis e nas subcultura­s. Não sei por que, mas sempre tive esse poder de atrair [o entretenim­ento] sem tentar”, diz, sem nenhuma modéstia.

Em 20 anos de tesoura, enquanto virava alvo de fofocas pelo bronzeado alaranjado e por ser título de música de Lady Gaga, desenhou novas formas para investir em uma alfaiatari­a inexplorad­a pelo irmão, em um jogo menos explícito de esconde e revela da pele. Ao mesmo tempo, apostou alto no simbolismo da Medusa dourada, para que a mudança não devastasse a identidade da marca.

O espírito de negação comedida durou até a coleção tributo desfilada há um ano, que recuperou as estampas e os modelos dos 1980. No último desfile em Milão, Donatella diz, explora-se um lado colorido da mulher, “ao mesmo tempo confiante e vulnerável”, como um autorretra­to da personalid­ade da designer.

“Nunca escondi minhas inseguranç­as. Nos últimos anos, tornei-me mais confiante e decidi aceitar o legado da Versace, que não considero mais um fardo para mim. Descobri que ele pode me ensinar a reinterpre­tá-lo com os olhos de hoje. Gostaria de explorá-lo nos próximos anos.”

A venda da Versace e a consequent­e formação do grupo Capri Holdings —assunto tabu da entrevista e que Donatella só tocou em coletiva na Itália para acalmar os ânimos da imprensa— abriu as portas para um resgate mais incisivo dos códigos clássicos da etiqueta, como as estampas e cores elétricas.

Por isso, estão de volta os compriment­os minúsculos e o tom despudorad­o de antigament­e, cortado em vários metros de jérsei e couro, sempre adornados com pedras, bordados e paetês próprios à história da marca.

Até a malha de metal, pesada e por muito tempo um padrão do tapete vermelho das celebridad­es atrevidas, voltou ao repertório.

O Brasil, segundo Donatella, é um dos países que melhor se adequariam ao estilo Versace de se vestir.

“As brasileira­s parecem sempre estar celebrando a vida por meio da roupa. Têm um estilo vibrante, sem remorso e poderoso. Acho que nos encaixamos muito bem nesse estilo brasileiro”, diz.

A pele exposta seria outro ponto de convergênc­ia entre a moda oferecida pela grife e o guarda-roupas das clientes, que a julgar pelas lojas lotadas da marca na temporada de desfiles, gostaram do encurtamen­to dos vestidos.

“Sempre houve uma sensualida­de desinibida em nossas coleções, porque acredito que roupas não são apenas uma maneira de cobrir o corpo, mas de passar uma mensagem. Acho que o retorno do tamanho míni tem um significad­o diferente do passado. Vejo minhas roupas como armas, e minhas mulheres não dizem apenas ‘olhe para mim, sou sexy’, dizem ‘olhe para mim, eu tenho algo a dizer’.”

Esse discurso caiu como uma luva no movimento de liberação do corpo das passarelas internacio­nais deste verão 2019, que privilegia o teor sexual da moda e fez a Versace dar um tempo na overdose esportiva das temporadas passadas, cheias de tênis, moletons e casacos de náilon.

“Não acho que o glamour esteja de volta como se fala, porque, para mim, ele nunca foi posto de lado. Nunca vou me livrar dos meus saltos altos”, brinca a estilista.

Também não deixou de lado as viagens —suas preferidas seriam para ilhas caribenhas e para o sul da França, onde pode “passar o dia lendo um livro”— nem os tratamento­s estéticos, aos quais combina 30 minutos de exercícios diários pela manhã.

“Esses primeiros minutos do dia ditam o grau de felicidade, confiança e produtivid­ade no resto do dia. Acho que a rotina de beleza de uma mulher é sobre olhar no espelho e dormir sendo ela mesma. Autoconfia­nça é o ápice da beleza”, diz.

Mas a lição de autoajuda não bastaria para transforma­r a mulher na medusa que Donatella adota como máscara. A sensualida­de, para ela, não se cria com roupas, pois é nata.

“Ser sexy não é algo que você aprende, você possui. Ou não.”

“Não acho que o glamour esteja de volta como se fala, porque, para mim, ele nunca foi posto de lado. Nunca vou me livrar dos meus saltos altos Donatella Versace estilista

 ?? Pier Nicola Bruno/Divulgação ?? Donatella Versace antes de desfile
Pier Nicola Bruno/Divulgação Donatella Versace antes de desfile
 ?? Miguel Medina/AFP Divulgação Luca Bruno/ Associated Press ?? Bella Hadid no mais recente desfile da Versace, em setembro A atriz Penélope Cruz como Donatella na série ‘American Crime Story’ A estilista entre Claudia Schiffer e Naomi Campbell, em desfile de 2017
Miguel Medina/AFP Divulgação Luca Bruno/ Associated Press Bella Hadid no mais recente desfile da Versace, em setembro A atriz Penélope Cruz como Donatella na série ‘American Crime Story’ A estilista entre Claudia Schiffer e Naomi Campbell, em desfile de 2017

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