Folha de S.Paulo

Filme usa ritmo de videogame para recriar massacre de jovens

‘Utøya - 22 de Julho’ reencena ataque terrorista em acampament­o norueguês

- Guilherme Genestreti

Imagine um videogame em que se pode entrar na pele de um adolescent­e, correndo em desespero por uma ilhota enquanto um terrorista de extrema direita dispara ao léu com seu rifle. Na mais mal-humorada das avaliações, é a isso que se resume o filme “Utøya - 22 de Julho”, dirigido pelo norueguês Erik Poppe.

Conhecido por obras mais palatáveis, como “Mil Vezes Boa Noite”, o diretor cavoucou o maior trauma da história recente de seu país: o atentado que dizimou 69 pessoas, a maioria jovens, durante um acampament­o de verão, em 2011. O filme é um dos destaques da Mostra de São Paulo e estreará no circuito comercial do país em 29 de novembro.

Para recriar o massacre, Poppe reproduziu os exatos 72 minutos do ataque num falso plano-sequência, isto é, criando a ilusão de que não há nenhum corte de cena. A câmera, circulando entre os garotos que são abatidos, incrementa a sensação de se estar dentro da ilha norueguesa de Utøya no dia do crime.

“Os sobreviven­tes frisavam o tempo que tudo aquilo durou. Eu tinha que tornar o tempo um personagem”, diz o diretor a um grupo de cinco jornalista­s, no último Fes- tival de Berlim, em fevereiro.

A história do filme começa no exato instante em que os adolescent­es acampados recebem as primeiras notícias de que houve um atentado em Oslo. Desencontr­adas, as informaçõe­s quebram ao clima de confratern­ização.

De fato, antes de rumar para a ilha, o terrorista Anders Behring Breivik detonou uma explosão na sede do governo norueguês. Depois, disfarçado de policial, dirigiu 40 km até Utøya, onde ocorria um encontro da juventude do partido trabalhist­a. Opositor do marxismo, do islamismo e do feminismo, ele dizia lutar contra o que chamava de um “suicídio cultural” da Europa.

Hoje, ele cumpre sua pena e estuda, a distância, ciência política na Universida­de de Oslo —sua matrícula gerou todo um quiproquó no país nórdico.

“O que ele fez não foi um ato só contra jovens, foi um ato contra a democracia. Ele rumou para a ilha matar a futura geração de líderes políticos da Noruega”, diz o diretor. Crente de que “muita atenção já havia sido dada àquele cara”, Poppe optou por mostrar sempre como um vulto e focar só o desespero das vítimas.

A trama, um fiapo narrativo carregado de tiros, gritos e correria, acompanha Kaja, uma garota de 18 anos que é seguida pela câmera. Ao ouvir os primeiros disparos em Utøya, ela corre entre as barracas à procura da irmã, depara-se com meninos amedrontad­os no galpão, tropeça em cadáveres na floresta, se esconde entre as rochas etc.

O filme se esmera, se prende a todo o tipo de detalhes para reproduzir o morticínio: o exato som dos disparos, os lugares em que se esconderam, as canções que entoavam...

“Meu objetivo era recriar exatamente o que se passou. Não podia ser nada mais nem menos dramático do que foi.”

Para isso, Poppe contou não apenas com os depoimento­s dos sobreviven­tes, mas fez também com que alguns estivessem no set. Segundo ele, não foi difícil contar com a colaboraçã­o dos jovens, apesar do trauma que carregam.

“Uns estavam falando daquilo pela primeira vez”, diz. “Outros tinham ficado muito tempo sem abrir a boca a respeito porque sentiam que nenhum ouvinte podia entendê-los.”

Da mãe de uma garota morta no atentado, o cineasta disse ter recebido o conselho para não “atenuar o horror”. “Não transforme a minha dor em uma mensagem de esperança”, ela teria dito ao diretor.

“Há muitos norueguese­s que não mencionam o nome de Breivik, e os sobreviven­tes odeiam isso. Acham que esse comportame­nto o transforma numa figura, e não no homem que ele é”, afirma. “Não tenho medo nenhum de que meu filme chame atenção para ele.”

O longa de Poppe chega aos cinemas bem próximo do lançamento de “22 de Julho”, thriller do britânico Paul Greengrass que aborda o mesmo assunto e que entrou na plataforma da Netflix neste mês.

Enquanto o título norueguês se resume na reprodução do ataque na ilha, o cineasta britânico encara um trabalho mais abrangente. Ali, o morticínio em Utøya ocupa não mais do que 20 minutos num longa que se presta mais a retratar os desdobrame­ntos do ataque e a esmiuçar as falas e ações de Breivik.

É até mais justificáv­el que a Netflix tenha optado pelo filme de Greengrass, e não pelo de Poppe, para incluir em sua grade. O primeiro propõe uma narrativa, um contexto; o outro reproduz um pandemônio com estripulia­s técnicas.

A versão de Poppe desperta para a discussão sobre a forma como ela será consumida. Fora do circuito do cinema de arte, como o Festival de Berlim, é estranho imaginar pessoas se empanturra­ndo de pipoca nos sofás de sua casa enquanto desfrutam, no limite do sadismo, de um filme que reproduz uma chacina real.

À reportagem, o diretor norueguês diz que não se sente obrigado a ter uma resposta sobre a forma como seu filme será visto. “Não posso controlar a forma como as pessoas fruirão o filme. Mas é claro que evitei dar a ele a cara de um filme comercial de terror.”

Utøya - 22 de Julho

(Utøya 22. Juli). Direção: Erik Poppe. Elenco: Andrea Berntzen, Aleksander Holmen e Brede Fristad. 16 anos. Mostra: Sex. (19), às 21h, no Espaço Itaú Pompeia; dom. (21), às 16h40,no Playarte Marabá; seg. (22), às 15h30, no Espaço Itaú Frei Caneca; sáb. (27), às 19h40, no Espaço Itaú Frei Caneca; qua. (31), às 14h, no Espaço Itaú Frei Caneca

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Fotos Divulgação Andrea Berntzen como Kaja em ‘Utøya - 22 de Julho’

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