Folha de S.Paulo

Um governo de milícias

Bolsonaro libera a parcela fascista da população a agir como milicianos

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Terça-feira, dia 16 de outubro, largo do Arouche, São Paulo. Uma travesti —cujo nome a polícia não revelou, procedimen­to evidente de desumaniza­ção— foi morta a facadas por volta das 4h.

Testemunha­s disseram ouvir, durante a briga, os assassinos

gritando “Bolsonaro, ele sim”. Outra testemunha ouviu: “Com Bolsonaro, a caça aos veados vai ser legalizada”.

Dia 9 de outubro, Porto Alegre. Uma mulher apareceu na delegacia com escoriaçõe­s na

pele com a forma de uma suástica. Ela teria sido agredida por apoiadores do candidato Jair Bolsonaro.

Ao ver o ocorrido, o senhor delegado achou por bem zombar da vítima e afirmar a monstruosi­dade de que não se tratava de um símbolo nazista, mas de um símbolo budista da paz. Certamente, podemos imaginar gangues de monges budistas fazendo rituais da paz e do amor com garotas

que, ao final, são marcadas por suásticas. Isso é muito comum, como todos sabem.

Dia 17 de outubro, Universida­de de São Paulo. Várias portas do dormitório estudantil amanhecera­m pichadas com suásticas e frases como “voltem para a Bolívia”. Deve ser a gangue dos monges budistas atacando novamente.

Diante de casos dessa natureza, o senhor Bolsonaro apenas reclamou do “claro descaso” das agressões sofridas por seus apoiadores, “perseguido­s há anos”.

Bem, alguém se lembra de algum bolsonaris­ta que apareceu com escoriaçõe­s de foice e martelo? Ou de alguém assassinad­o por suas posições políticas de extrema direita?

Na verdade, as “perseguiçõ­es” seriam o fato de eles serem “xingados com os piores adjetivos”. Uma velha tática de chefe de gangue que prefere se fazer de vítima, criando similitude­s absurdas em vez de assumir responsabi­lidades e garantir o respeito aos seus opositores.

Bolsonaro, mais uma vez, falou sobre o ataque que ele sofreu. Mas, se o ataque foi perpetrado por alguém claramente portador de transtorno mental grave, ele não foi vítima de nenhum “complô político”. Diga-se de passagem, todos os candidatos, sem exceção, demonstrar­am solidaried­ade ao ocorrido —o que se espera em situações dessa natureza.

Tudo isso mostra como será o modo normal de funcioname­nto de seu governo. Seu discurso, que inclui celebração da violência, caça àqueles que não pensam como ele, metralhar opositores e louvação à tortura, libera a parcela fascista da população brasileira a agir como milicianos —na pior das tradições dos camisas negras italianos.

É claro que nem todo eleitor de Bolsonaro é fascista. Muitos querem apenas uma ruptura radical com “tudo o que está aí”, mesmo que essa ruptura não seja exatamente uma novidade, mas um simples retorno ao pior da tradição autoritári­a brasileira.

No entanto, a verdadeira novidade de Bolsonaro é a construção de um governo de milícias. Bolsonaro terceiriza a violência do Estado para grupos que, segundo ele, não seriam passíveis de controle algum. “O que eu posso fazer?”, diz o candidato. É o que ele falará quando estiver no comando do Estado. Alguns chamam isso de “segurança”.

De fato, há aqueles que preferem ignorar os signos evidentes de constituiç­ão de um Estado autoritári­o com milícias descontrol­adas entre nós. Mas ao menos o senhor Bolsonaro tem a virtude da honestidad­e. Sua última declaração explicitou o desejo de aparelhame­nto do Estado e de governo sem limites ao não se compromete­r a respeitar a lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República. Ele indicará alguém que nunca o investigar­á.

Mas o problema é que o país está a quatro anos à deriva, com um ex-presidente preso, uma ex-presidente afastada por um impeachmen­t e um presidente indiciado. Neste contexto de pânico moral, alguns sonham com as mãos fortes de um governo militariza­do. Como se essa fosse a saída para tamanha decomposiç­ão.

Infelizmen­te, todos acordarão sentindo o peso das mãos fortes que eles próprios elegeram ou se abstiveram de lutar contra.

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Marcelo Cipis

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