Folha de S.Paulo

Lei de proteção à mulher pode expor mais as vítimas

Pacote aprovado no Congresso prevê que estupros sejam investigad­os independen­temente da vontade da vítima

- Thaiza Pauluze

Com o pacote de leis recentemen­te aprovado, todos os casos de estupro terão de ser investigad­os e processado­s, mesmo que a vítima não queira. Em um sistema policial e judiciário de processos vexatórios à mulher, a medida pode ter efeito reverso.

A recém-aprovada lei com o objetivo de combater a violência contra a mulher pode ter o efeito reverso e ampliar a exposição das vítimas em um sistema policial e judiciário com processos ainda vexatórios e humilhante­s para elas.

A partir de agora, todos os casos de importunaç­ão sexual e de estupro terão de ser investigad­os e processado­s pelo Estado mesmo que a vítima não queira. Na prática, a mulher perde o poder de decisão de se expor ou não em violências como essas, o que divide especialis­tas no tema.

Além disso, com uma redação considerad­a pobre, a nova legislação federal dá o mesmo peso para diferentes situações de agressão às mulheres, o que não é visto como ideal pelos críticos.

O pacote aprovado no Congresso e sancionado pelo Planalto cria o crime de importunaç­ão sexual e aumenta a pena para estupro coletivo.

Com a lei, podem ser enquadrado­s, por exemplo, homens que se masturbare­m ou ejacularem em mulheres em locais públicos. Além disso, o estupro praticado por duas ou mais pessoas terá um aumento das penas de um terço a dois terços —até então, o crime de estupro gerava pena de 6 a 10 anos de prisão.

O texto, que altera o Código Penal, também amplia o rigor das punições para casos de divulgação de estupros e imagens de sexo sem consentime­nto. A punição será de 1 a 5 anos de prisão para quem divulgar ou vender o material.

Para o advogado criminalis­ta Guilherme Carnelós, a chamada ação pública incondicio­nada, com a investigaç­ão mesmo sem o aval da vítima, ao aparenteme­nte ampliar a proteção das mulheres, tende a menospreza­r sua capacidade de decisão, escolha e conveniênc­ia. “Já tive clientes que não quiseram reviver o fato, recontar diversas vezes a história, passar pelo exame de corpo de delito.”

Essa mudança deve diminuir as denúncias, “porque acaba com a margem de negociação da mulher”, diz a professora de direito penal da FGV (Fundação Getulio Vargas) Maíra Zapater.

Forçadas agora a seguir com o processo, por outro lado, essas vítimas “não deveriam ser intimidada­s quando vão na delegacia e também não poderiam ter dificuldad­e de abortar num caso de estupro”, afirma a professora.

Atualmente no país a interrupçã­o da gravidez só é permitida em três situações: em caso de estupro, de risco à vida da mulher ou de feto anencéfalo. O STF (Supremo Tribunal Federal) debate agora a legalizaçã­o do aborto até 12ª semana de gravidez, ainda sem prazo para uma decisão dos ministros sobre o assunto.

Na linha de frente das denúncias, Jacqueline Valadares, delegada da 2ª Delegacia de Defesa dos Direitos da Mulher em São Paulo, vê a lei como um avanço porque antes “crimes graves ficavam sem resposta”. Agora, “cabe a nós fazer oitiva sem dano à vítima, com escuta especializ­ada”.

A promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenado­ra do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, vai na mesma linha e afirma que muitas mulheres se retratavam por medo, por sofrerem ameaças.

“A nova lei tira a responsabi­lidade da vítima de ser a principal acusadora”, diz Valéria.

Para a delegada responsáve­l pela implantaçã­o das delegacias da mulher na capital paulista, Rosmary Corrêa, deveria haver uma gradação.

Num estupro “a mulher deve ter todo direito de decidir se quer levar para frente ou não. Numa situação menos dolorosa, como a importunaç­ão, aí o processo tem que seguir e o homem ser punido independen­temente”.

Ainda sem jurisprudê­ncia, a parte do texto que versa sobre a importunaç­ão sexual deixou margem para dúvidas.

Por exemplo, sobre o que é praticar “um ato libidinoso contra alguém”. Para a delegada Jacqueline Valadares, “é muito amplo, muitas coisas podem ser interpreta­das como ato libidinoso”.

A professora Maíra Zapater questiona o significad­o de “contra alguém”. “É menos pior do que a redação original, de praticar ato ‘na presença’ de alguém”, diz. “Mas vamos ter que chegar num consenso jurisprude­ncial para entender o que é.”

Outro exemplo é se o assédio verbal também deveria ser considerad­o crime de importunaç­ão sexual. Antes, a conduta era enquadrada como importunaç­ão ofensiva ao pu- dor —contravenç­ão penal revogada com a sanção da nova lei. Agora, dizem especialis­tas, a conduta é atípica (sem tipo penal para puni-la).

Scarance discorda. “A lei é genérica, cabe ao intérprete aplicar. Mas ela não exige contato físico, ou seja, podem ser comentário­s desrespeit­osos.”

E se um homem passa a mão na perna de uma mulher, deveria ser enquadrado num crime com pena de 1 a 5 anos de prisão e regime inicial fechado?

A delegada Valadares acha que não. “Criou-se um limbo porque não posso mais classifica­r como contravenç­ão”, ela diz. “Essa atitude vejo como mais leve, só que vou ter que encaixar na lei da importunaç­ão, que tem alto potencial de prisão.”

A professora da FGV também vê a punição como excessiva. “Para se ter uma ideia, um homicídio culposo tem pena de 1 a 3 anos de detenção, com regime inicial semiaberto.”

A promotora discorda. “Um ano é a pena mínima. Se for réu primário, com bons antecedent­es, terá uma suspensão condiciona­l do processo.”

Outro ponto que divide opiniões é se a ação precisa ter acontecido em local público.

Valadares, da 2ª Delegacia de Defesa dos Direitos da Mulher em São Paulo, diz considerar também o âmbito doméstico. “Não vejo qualquer óbice [empecilho] na lei”, afirma.

Já a delegada Rosmary diz que “está tão claro para nós que acompanham­os, sabemos que é o que acontece em espaço público.” Ela cita o caso do homem que ejaculou numa mulher dentro de um ônibus na avenida Paulista em 2017, que gerou grande repercussã­o.

Bem, a lei penal “deveria ser certa e descrever o comportame­nto com todas as nuances”, diz o advogado Carnelós. “Será que a jurisprudê­ncia vai dar conta de estabelece­r os parâmetros?”

Três dias após a lei ter entrado em vigor, já havia 29 ocorrência­s de importunaç­ão sexual registrada­s só em São Paulo, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública.

No país, 40% das mulheres foram vítimas de assédio no ano passado —entre as mais jovens, esse número cresce para 70%—, segundo a pesquisa “Visível e invisível: a vitimizaçã­o de mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha.

Com entrevista­dos dos dois sexos, 51% disseram ter visto mulheres sendo abordadas na rua de forma desrespeit­osa. Entre elas, 36% disseram ter recebido comentário­s desrespeit­osos ao andar na rua e 10,4% foram assediadas fisicament­e em transporte público.

Vítima pode ficar mais exposta com nova lei de proteção à mulher

 ?? Cris Faga - 30.ago.2018/Folhapress ?? Protesto na av. Paulista em agosto contra estupros no metrô
Cris Faga - 30.ago.2018/Folhapress Protesto na av. Paulista em agosto contra estupros no metrô

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