Folha de S.Paulo

Caro general, o senhor é um macaco, assim como eu

O senhor é um macaco — assim como eu, meu filho e minha filha e todos nós

- Reinaldo José Lopes

Caríssimo general, O senhor é um macaco. Não, por favor, não me entenda mal: a frase acima não é um insulto. Eu também sou um macaco. Meu filho e minha filha, as coisas que mais amo neste mundo, idem. Nosso Senhor, quando se fez homem por amor a nós, assumiu um plano corporal que é basicament­e o de um grande macaco africano, ainda que bípede. (Digo “Nosso Senhor” sem ironia alguma — sou tão cristão quanto os apoiadores do seu candidato.)

Toco no assunto porque, alguns dias atrás, o senhor andou conversand­o com nosso concorrent­e sobre seus planos para a educação pública no país. Aliás, gostei da sua proposta de valorizar o professor e fazer com que os alunos o respeitem em sala de aula (sou filho de professora do ensino fundamenta­l, sabe como é).

No entanto, foi difícil evitar certo espasmo de vergonha alheia ao ler estas suas declaraçõe­s: “Escolas orientadas ideologica­mente querem mudar a opinião que a criança traz de casa. Cabe citar o criacionis­mo, o darwinismo, mas não cabe querer dizer que criacionis­mo não existe. (...) Houve Darwin? Houve. Não é para concordar, tem de saber que existiu.”

Bem, diz o Evangelho que Deus faz cair a chuva imparcialm­ente sobre os justos e os injustos, mas não diz que o homem que recebe as gotas no nariz pode discordar da existência da dita chuva. Essa continua caindo, independen­temente dos desejos do homem.

Assim é com Darwin —aliás, com a teoria da evolução, que avançou a passos largos depois do britânico. O DNA em cada uma das suas células dá testemunho de que o senhor é um grande símio, assim como os fósseis, a anatomia, o comportame­nto humano.

O que me preocupa, general, é a impressão de que vocês têm certos probleminh­as com fatos (conforme sugere a sua relutância de chamar o regime ditatorial de 1964 de, ora bolas, ditadura). Mas fiquemos só na seara evolucioni­sta: um professor que disser aos seus alunos que tanto faz como tanto fez se eles se reconhecem como primatas ou acham que o Universo tem 6.000 anos de idade não está respeitand­o as crenças da garotada e de seus pais. Está apenas mentindo para eles, o que é bem diferente.

Repare que explicar aos estudantes o porquê de os fatos apoiarem a teoria da evolução está longe de ser doutrinaçã­o ateísta.

A ciência, por definição, tem pouco ou nada a dizer acerca da existência de Deus. Mas estudar as evidências da evolução pode ajudar um bocado a entender como se constrói uma teoria com base no estudo cuidadoso e humilde do mundo ao nosso redor.

É o tipo de disciplina mental sem a qual não se criam novas tecnologia­s, por exemplo — aquelas que hoje fazem a riqueza de um país no longo prazo, e não no ciclo curto e comezinho dos mandatos presidenci­ais.

General, o senhor e seus companheir­os de armas merecem todo o crédito pelo comportame­nto exemplar que tiveram nos últimos 30 e tantos anos de história brasileira. Acredito firmemente que a imagem do futuro que vocês desejam não é a de um coturno pisoteando um rosto humano para sempre (Orwell, general; se não leu ainda, vale a pena).

Algumas coisas, porém, pisam bem mais fundo que coturnos. Os fatos da natureza, por exemplo (como as mudanças climáticas, aquelas coisas inexistent­es que ameaçam tragar as praias de Angra onde seu candidato gosta de pescar em condições duvidosas). Se eu fosse o senhor, não arriscaria levar uma botinada deles.

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