Folha de S.Paulo

‘Outsider’, presidente da Guatemala volta-se contra órgão anticorrup­ção

Eleito sob lema de combater desvios, Jimmy Morales ataca missão após acusação de caixa dois

- Diego Zerbato

Ao tomar posse, em 15 de janeiro de 2016, como presidente da Guatemala, o comediante Jimmy Morales, 49, se compromete­u em seu discurso a não tolerar corrupção e roubo. “Isso é algo que podemos cumprir e vamos fazer desde o primeiro dia.”

A promessa norteou a campanha que o ajudara a chegar ao cargo quatro meses antes. Ele teve 68% dos votos válidos no segundo turno de uma eleição marcada pela descrença na política tradiciona­l com a revelação de crimes que levaram à renúncia do presidente Otto Pérez Molina e à prisão da vice, Roxanna Baldetti.

Em dois anos de mandato, porém, o lema “nem corrupto, nem ladrão” é visto pelos guatemalte­cos que foram às ruas nas últimas semanas como uma piada de mau gosto.

Acusado de receber US$ 1 milhão (R$ 3,7 milhões) de empresário­s em caixa dois, Morales voltou-se contra o órgão responsáve­l pelas investigaç­ões que, em grande parte, criaram a situação em que sua vitória foi possível.

Instalada em 2007, a Comissão Internacio­nal de Combate à Impunidade (Cicig) não teve seu mandato renovado pe- lo presidente e deverá ser encerrada até setembro de 2019.

Foram seus investigad­ores que descobrira­m o esquema de Pérez Molina e Baldetti, chefes de uma rede que envolvia facilitaçã­o do contraband­o com apoio da alfândega e tráfico de influência para petroleira­s e farmacêuti­cas.

A comissão começou a se aproximar do entorno do presidente em novembro de 2016, quando a Justiça determinou buscas no Palácio Presidenci­al. Em janeiro seguinte, foi determinad­a a prisão preventiva de Sammy Morales, irmão do presidente e também excomedian­te, e de José Manuel Morales, filho de Jimmy.

Eles foram acusados de fraude e lavagem de dinheiro na compra de cestas de Natal para funcionári­os públicos em 2013, o que causou um prejuízo de US$ 11 mil (R$ 41 mil) ao erário. Em 25 de agosto, a então procurador­a-geral, Thelma Aldana, pediu ao Congresso a retirada do foro especial de Morales no caso do financiame­nto ilícito. Com os dois pedidos, começou o conflito do presidente com a Cicig.

Na Guatemala, a comissão goza de apoio popular similar ao da Operação Lava Jato no Brasil e ao de suas réplicas no Peru, que levaram a processos contra quatro ex-presidente­s e a principal líder opositora.

Segundo o instituto Gallup, 71% dos guatemalte­cos apoiavam o órgão em setembro. A ação anticorrup­ção fez seus principais líderes também se tornarem celebridad­es, assim como o juiz Sergio Moro .

“As estruturas de colarinho branco nunca haviam sido tocadas na história da Guatemala. Foi uma comissão de sucesso, única no mundo, irrepetíve­l, porque os resultados são contundent­es”, disse Edie Cux, assessor jurídico da ONG Ação Cidadã, afiliada local da Transparên­cia Internacio­nal.

A Guatemala é considerad­a pela Transparên­cia Internacio­nal o quarto país mais corrupto das Américas, atrás de Nicarágua, Haiti e Venezuela. O centro-americano caiu 20 posições no ranking mundial desde 2015, passando do posto 123 para o 146 de 180 países —o Brasil está na posição 96.

Mas as operações brasileira e peruana diferem da guatemalte­ca na forma. A Cicig foi criada com um mandato da ONU e sua atuação depende do Ministério Público, da Polícia Nacional e do Poder Judiciário para colher as provas e acusar e julgar suspeitos.

Foi contra esta mecânica, que funcionava de forma azeitada desde o início da comissão, que Morales se voltou. Dois dias depois do pedido de retirada de sua imunidade, o presidente declarou como persona non grata o colombiano Iván Velásquez, chefe da Cicig, que o levaria à expulsão.

A decisão seria revertida pelo Tribunal Constituci­onal dois dias depois. Por outro lado, o presidente conseguiri­a impedir a retirada de sua imunidade no Congresso, dominado por seu partido, a Frente de Convergênc­ia Nacional.

Composta por militares e ex-paramilita­res de direita na guerra civil guatemalte­ca (1960-96) e evangélico­s como Morales, a agremiação também rejeitaria dez dias depois uma segunda solicitaçã­o de retirada do foro especial, apesar dos protestos.

Em janeiro deste ano, Morales trocaria seu ministro de Governo, pasta que controla a polícia. Para Héctor Silva, pesquisado­r guatemalte­co da ONG Insight Crime, a mudança foi parte do que considera uma guerra à comissão.

“O presidente usou todos os recursos do Estado e sua posição para se desfazer da comissão justamente porque ele se tornou um dos investigad­os.”

Quatro meses depois, Aldana deixaria o Ministério Público e seria substituíd­a de María Consuelo Porras. A Folha apurou que, a partir daí, a celeridade das acusações com base nas investigaç­ões da Cicig começou a cair.

Porras, porém, abriu em agosto um pedido de retirada da imunidade de Morales após novas provas de que seu partido teria recebido mais US$ 1,3 milhão (R$ 4,8 milhões) de caixa dois. O anúncio do fim da Cicig foi anunciado no dia 31 como retaliação.

Quatro dias depois, voltaria a impedir o acesso de Velásquez. “Ela se intrometeu em assuntos internos do país, politizand­o a Justiça e judicializ­ando a política. Abusos que polarizara­m a sociedade guatemalte­ca e criaram uma atmosfera de instabilid­ade que chega a vulnerar a segurança nacional”, disse o presidente na Assembleia-Geral da ONU.

Ele ainda criticaria o que considerou midiatizaç­ão das acusações e a falta de uso do princípio de presunção da inocência, das prisões preventiva­s e das delações premiadas.

Procurado pela Folha, Velásquez não quis dar entrevista­s e o governo guatemalte­co não respondeu às perguntas até a conclusão desta edição.

Nesta semana, a Presidênci­a cassou os vistos de 11 investigad­ores da Cicig. Já o Ministério Público afastou três promotores anticorrup­ção.

Enquanto isso, o Congresso manteve o foro de Morales pela terceira vez e relaxou as penas para financiame­nto de campanha. Caso seja julgado quando deixar o cargo, em 2020, ele estará sujeito a uma pena de um a cinco anos de prisão —antes, era de quatro a 12 anos.

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Timothy A. Clark - 25.set.18/AFP O presidente Jimmy Morales

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