Folha de S.Paulo

Bolsonaro, marajás e gastos militares

Para conter gastos, seria preciso enfrentar despesas com servidores, militares inclusive

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Jair Bolsonaro prometeu acabar com a “farra de marajás”, funcionári­os públicos que juntam pendurical­hos a seus salários altos. Prometeu também reforma da Previdênci­a aguada: “Não podemos penalizar quem já tem direitos adquiridos. O servidor público já sofreu duas reformas”.

O candidato parece perdido entre dois mundos. Ainda vive na Terra do Nunca programáti­co, que fica entre o país liberal de seu economista-chefe, Paulo Guedes, e a ilha das corporaçõe­s estatais, entre elas a militar, da qual fez parte.

No entanto, a arrumação das contas públicas depende de um plano que tem de bulir com servidores públicos e aposentado­s em geral.

Gastos previdenci­ários levam 47,7% da despesa total do governo federal; outros 22% vão para gastos com servidores (salários, aposentado­rias e benefícios). Somados, dão quase 70%.

O gasto com militares leva um quarto da despesa federal com o funcionali­smo. De cada R$ 3 gastos com a folha de pessoal dos militares, R$ 2 vão para aposentado­rias e pensões, que custam cerca de R$ 47,5 bilhões por ano.

Aposentado­s e pensionist­as militares custam o equivalent­e a um ano e meio de Bolsa Família, por exemplo. Outra comparação: os investimen­tos federais (em obras, como estradas, ou outros) levam apenas 0,8% da despesa total, uma miséria. O gasto com a folha dos militares leva 5,5%.

Por falar em investimen­to, o orçamento do Ministério da Defesa nessa área perde apenas para o do Ministério dos Transporte­s. Nos últimos 12 meses, os investimen­tos da Defesa chegaram a R$ 10,4 bilhões, um quinto do total de investimen­tos federais. No Ministério da Saúde, investem-se R$ 5,2 bilhões.

Em si mesma, a lista dos investimen­tos da Defesa parece razoável. Pela ordem, gasta-se em aviões de combate (a compra e o desenvolvi­mento do caça sueco da FAB e do cargueiro novo da Embraer), em blindados, construção de submarinos, estaleiro naval, barcos, helicópter­os, foguetes de artilharia.

Há também gastos quase “civis”, como no sistema de controle do espaço aéreo ou no de vigilância de fronteiras, em um projeto de reator nuclear ou na reconstruç­ão da estação de pesquisa na Antártica, aquela que pegou fogo em 2012.

É muito? No caso dos salários, nem tanto.

O rendimento médio dos servidores civis da ativa é cerca de 70% superior ao dos militares. Mas o salário médio do setor público federal é cerca de 30% superior ao dos empregados do setor privado formal com as mesmas caracterís­ticas pessoais (idade, instrução, sexo etc.).

Essa conta está em relatório de pesquisa de Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, técnicos do FMI, publicado neste mês: “Rightsizin­g Brazil’s Public-Sector Wage Bill” (“O Ajuste da Folha Salarial do Setor Público do Brasil”).

De volta à folha dos servidores federais: seu custo equivale a 4,3% do PIB (dos quais 1,9% do PIB vão para aposentado­rias e pensões). O pessoal do FMI acha que, para o ajuste das contas públicas dar certo até 2023, seria preciso reduzir tal despesa para 3,3% do PIB.

Um exemplo aritmético de como atingir esse objetivo: seria necessário conter reajustes salariais (mesmo pela inflação) e contrataçõ­es por quatro anos, com o PIB crescendo a 3% ao ano. Não é uma receita, mas mostra o tamanho da encrenca.

Não deveria ser grande problema para quem quer caçar marajás, como Bolsonaro, mas é difícil para quem se diz adepto de direitos adquiridos —também como Bolsonaro.

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