Folha de S.Paulo

Debater com a heterodoxi­a cansa

É preciso apresentar estimativa­s que tenham algum respaldo na realidade

- Samuel Pessôa Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP

Ninguém discorda de que o Brasil é muito desigual e que o peso dos tributos sobre os mais pobres é maior do que deveria ser.

É comum afirmar que tudo se resolveria facilmente com a criação de um imposto sobre grandes fortunas.

As pessoas que têm se debruçado sobre esse problema espinhoso, a maneira de a política tributária reduzir as desigualda­des sociais, têm um pouco mais de dúvidas sobre como fazer isso do que Pochmann e Feldman demonstrar­am em colunas recentes nesta Folha.

Em um primeiro momento, eles dizem literalmen­te que o déficit primário previsto para 2019 “poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas”.

Quando demonstrad­o que seus números não se sustentam, escrevem que, com “a reformulaç­ão do Imposto sobre Heranças e Doações (ITCMD) e a taxação de dividendos e grandes fortunas, o potencial arrecadató­rio aproxima-se de 1,5% do PIB”.

Passam assim de uma base tributária possível para outra como se elas fossem intercambi­áveis e como se, no final, fosse tudo a mesma coisa.

Instados a apresentar os cálculos, eles silenciam. Feldman argumenta que dados da Receita Federal mostram que as 70 mil famílias mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%.

Esses são dados conhecidos sobre as distorções da tributação da renda. Qual é mesmo a arrecadaçã­o possível? Nossos economista­s heterodoxo­s escrevem, falam, andam em círculos, mas conta que é bom mesmo não fazem. É mais fácil chamar os que calculam de inimigos dos pobres.

As distorções do sistema tributário brasileiro são conhecidas. A complexida­de da tributação indireta é a principal. Mas também a tributação da renda precisa ser revista. Minha coluna da semana passada apontou haver consenso da necessidad­e de elevação da carga tributária sobre os mais ricos.

O que se espera daqueles que pretendem efetivamen­te contribuir para o debate é que enfrentem cuidadosam­ente o desafio de pensar como isso pode ser feito.

Um primeiro passo pode ser o de apresentar estimativa­s que tenham algum respaldo na realidade. Também contribuir­ia para o debate se os conceitos fossem empregados como um mínimo de rigor. Imposto sobre grandes fortunas incide sobre as grandes fortunas. Aumento de alíquota do ITCMD eleva a tributação sobre heranças e doações.

Ainda que o imposto sobre as grandes fortunas tenha sido abolido em quase todos os países da Europa, nada impede, em tese, que esse seja um caminho possível por aqui.

Mas, nesse caso, seria interessan­te que fossem analisados os problemas envolvidos na sua criação e implantaçã­o. Um problema conhecido é o da fuga de capitais. Não é à toa que propostas recentes de criação de um imposto sobre grandes fortunas na Europa pensam o tributo no contexto da União Europeia como um todo, e não de cada país isoladamen­te.

Quando se trata da tributação da riqueza, a base “heranças e doações” é preferível em relação à base “grandes fortunas”.

Estimativa­s fantasiosa­s em nada contribuem para a avaliação das potenciali­dades e riscos dos diversos caminhos possíveis.

Na coluna passada, mencionei o famoso discurso em que Churchill disse ao povo inglês que somente tinha “sangue, suor e lágrimas” para lhes oferecer. O correto é “sangue, labuta, lágrimas e suor”. Escapoume a labuta. Não deve ter sido simples esquecimen­to! Agradeço a meu amigo Manuel Thedim pela correção.

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