Falta de licença freia roça tradicional em comunidades quilombolas de SP
Cultivo depende de aval do estado; atraso compromete alimentação e biodiversidade, diz entidade
A falta de autorizações para supressão de vegetação atrasa a roça tradicional de comunidades quilombolas no Vale do Ribeira.
Segundo dados levantados pelo ISA (Instituto Socioambiental), só 3 dos 17 quilombos acompanhados receberam as licenças do Governo do Estado de São Paulo para o ciclo de plantio de 2018-2019, essas solicitadas no primeiro semestre do ano passado.
A roça de coivara, plantio tradicional dessas comunidades, é feita majoritariamente para subsistência. Trata-se de um sistema que usa queimadas controladas para abrir espaço para o cultivo.
Para evitar o esgotamento do solo, é utilizado um sistema de rodízio pelo qual, depois de alguns anos plantando na mesma área, o agricultor abandona o terreno para que a floresta se restabeleça.
A etapa que demanda a autorização é a da supressão da vegetação na área, que vem antes da queima.
Segundo Lúcia Munari, pesquisadora do grupo de estudos da USP que acompanha a região, o atraso da licença é impeditivo porque não vale a pena plantar fora do período tradicional das etapas. “Se você não obedecer o calendário agrícola, será um trabalho à toa. A produção vai ser muito abaixo do que se espera”, diz.
Entre as comunidades, o Quilombo de Ivaporunduva, um dos mais antigos da região, tem o maior número de famílias —98. Segundo Vandir da Silva, conselheiro fiscal da associação do quilombo, a co- munidade solicitou cerca de 30 autorizações, mas nenhuma foi atendida.
Há alimentos, como o feijão, que podem ser plantados em mais de um período do ano. Mas outros como o arroz, explica Vandir, só podem ser cultivados em uma época específica. Para conseguir plantar o grão em dezembro, a comunidade precisa cortar a área no máximo até o final deste mês.
Benedito Alves da Silva, membro da Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e um dos líderes de Ivaporunduva, foi um dos que pediram a autorização em 2016 para o ciclo de 2018.
Uma outra, solicitada em 2015, também nunca chegou. “Aqui é um quilombo, tem mais de 400 anos. Antigamente ninguém usava licença: a prática dos nossos antepassados ensinou a forma que nós trabalhamos”, diz Ditão, apelido pelo qual é conhecido.
O grupo de pesquisa da USP, liderado pela professora Cristina Adams, levantou dados que mostram que esse problema não é novo. De 2008 a 2013, os quilombos não receberam nenhuma autorização.
“Nesse período em que eles ficaram cerca de seis anos sem licenças houve famílias que comeram muito pouco. Foi bem impactante”, conta a pesquisadora e professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Instituto de Energia e Ambiente da USP.
Em 2013, o processo de autorização foi repensado: antes anuais e enviadas de forma individual, hoje as licenças são bianuais e são encaminhadas agrupadas. “Antigamente, a secretaria alegava, o que é verdade, que o corpo de funcionários é muito reduzido”, conta Adams. “Hoje, eles estão agrupando as licenças e dando por dois anos, mas está chegando atrasado. Esse problema não foi resolvido.”
Em uma consultoria para o Instituto Socioambiental, pesquisadoras constataram que, de 2015 a 2017, 45% das pessoas com quem conversaram, em 14 comunidades, disseram que a licença não chegou na hora certa.
“Conforme o tempo vai passando, a gente pode dizer que a dependência da roça diminuiu porque há outras atividades aparecendo. Mas ainda há muitas famílias que dependem da roça”, diz Adams.
Ivy Wiens, assessora do Programa Vale do Ribeira do ISA em Eldorado, afirma que, além de ser uma questão de segurança alimentar, fazer o plantio no período correto também é importante para manter a agrobiodiversidade.
Muitas das sementes armazenadas não sobrevivem mais de um ciclo. “Aqui na região a variedade de espécies de sementes é muito grande e isso também é um patrimônio.”
Os levantamentos feitos pela USP em parceria com o ISA foram subsídio para o recente reconhecimento do sistema agrícola tradicional das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira como patrimônio brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).