Folha de S.Paulo

Falta de licença freia roça tradiciona­l em comunidade­s quilombola­s de SP

Cultivo depende de aval do estado; atraso compromete alimentaçã­o e biodiversi­dade, diz entidade

- Carolina Moraes

A falta de autorizaçõ­es para supressão de vegetação atrasa a roça tradiciona­l de comunidade­s quilombola­s no Vale do Ribeira.

Segundo dados levantados pelo ISA (Instituto Socioambie­ntal), só 3 dos 17 quilombos acompanhad­os receberam as licenças do Governo do Estado de São Paulo para o ciclo de plantio de 2018-2019, essas solicitada­s no primeiro semestre do ano passado.

A roça de coivara, plantio tradiciona­l dessas comunidade­s, é feita majoritari­amente para subsistênc­ia. Trata-se de um sistema que usa queimadas controlada­s para abrir espaço para o cultivo.

Para evitar o esgotament­o do solo, é utilizado um sistema de rodízio pelo qual, depois de alguns anos plantando na mesma área, o agricultor abandona o terreno para que a floresta se restabeleç­a.

A etapa que demanda a autorizaçã­o é a da supressão da vegetação na área, que vem antes da queima.

Segundo Lúcia Munari, pesquisado­ra do grupo de estudos da USP que acompanha a região, o atraso da licença é impeditivo porque não vale a pena plantar fora do período tradiciona­l das etapas. “Se você não obedecer o calendário agrícola, será um trabalho à toa. A produção vai ser muito abaixo do que se espera”, diz.

Entre as comunidade­s, o Quilombo de Ivaporundu­va, um dos mais antigos da região, tem o maior número de famílias —98. Segundo Vandir da Silva, conselheir­o fiscal da associação do quilombo, a co- munidade solicitou cerca de 30 autorizaçõ­es, mas nenhuma foi atendida.

Há alimentos, como o feijão, que podem ser plantados em mais de um período do ano. Mas outros como o arroz, explica Vandir, só podem ser cultivados em uma época específica. Para conseguir plantar o grão em dezembro, a comunidade precisa cortar a área no máximo até o final deste mês.

Benedito Alves da Silva, membro da Coordenaçã­o de Articulaçã­o das Comunidade­s Negras Rurais Quilombola­s e um dos líderes de Ivaporundu­va, foi um dos que pediram a autorizaçã­o em 2016 para o ciclo de 2018.

Uma outra, solicitada em 2015, também nunca chegou. “Aqui é um quilombo, tem mais de 400 anos. Antigament­e ninguém usava licença: a prática dos nossos antepassad­os ensinou a forma que nós trabalhamo­s”, diz Ditão, apelido pelo qual é conhecido.

O grupo de pesquisa da USP, liderado pela professora Cristina Adams, levantou dados que mostram que esse problema não é novo. De 2008 a 2013, os quilombos não receberam nenhuma autorizaçã­o.

“Nesse período em que eles ficaram cerca de seis anos sem licenças houve famílias que comeram muito pouco. Foi bem impactante”, conta a pesquisado­ra e professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidade­s e do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

Em 2013, o processo de autorizaçã­o foi repensado: antes anuais e enviadas de forma individual, hoje as licenças são bianuais e são encaminhad­as agrupadas. “Antigament­e, a secretaria alegava, o que é verdade, que o corpo de funcionári­os é muito reduzido”, conta Adams. “Hoje, eles estão agrupando as licenças e dando por dois anos, mas está chegando atrasado. Esse problema não foi resolvido.”

Em uma consultori­a para o Instituto Socioambie­ntal, pesquisado­ras constatara­m que, de 2015 a 2017, 45% das pessoas com quem conversara­m, em 14 comunidade­s, disseram que a licença não chegou na hora certa.

“Conforme o tempo vai passando, a gente pode dizer que a dependênci­a da roça diminuiu porque há outras atividades aparecendo. Mas ainda há muitas famílias que dependem da roça”, diz Adams.

Ivy Wiens, assessora do Programa Vale do Ribeira do ISA em Eldorado, afirma que, além de ser uma questão de segurança alimentar, fazer o plantio no período correto também é importante para manter a agrobiodiv­ersidade.

Muitas das sementes armazenada­s não sobrevivem mais de um ciclo. “Aqui na região a variedade de espécies de sementes é muito grande e isso também é um patrimônio.”

Os levantamen­tos feitos pela USP em parceria com o ISA foram subsídio para o recente reconhecim­ento do sistema agrícola tradiciona­l das comunidade­s quilombola­s do Vale do Ribeira como patrimônio brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

 ?? Fotos Karime Xavier/Folhapress ?? Donaide Morais, 64, moradora do Quilombo de Ivaporundu­va, no Vale do Ribeira, interior de SP; comunidade espera licença para roça
Fotos Karime Xavier/Folhapress Donaide Morais, 64, moradora do Quilombo de Ivaporundu­va, no Vale do Ribeira, interior de SP; comunidade espera licença para roça
 ??  ?? 11 Vandir Rodrigues da Silva, conselheir­o fiscal da Associação Quilombo de Ivaporundu­va, caminha nas terras que precisam de licença de plantio; 2 Feijão produzido no local; 3 Benedito Alves da Silva, uma das lideranças do quilombo
11 Vandir Rodrigues da Silva, conselheir­o fiscal da Associação Quilombo de Ivaporundu­va, caminha nas terras que precisam de licença de plantio; 2 Feijão produzido no local; 3 Benedito Alves da Silva, uma das lideranças do quilombo
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