Folha de S.Paulo

Uma ficção presidenci­al

Os candidatos Fernando Haddad e Jair Bolsonaro dariam bons personagen­s?

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

Para entender melhor o que está acontecend­o, vou usar o método da ficção na criação de personagen­s, seguindo o clássico registro realista.

Como se sabe, a ficção dá sentido às coisas do mundo, seguindo alguns pressupost­os de verossimil­hança, de acordo com um certo senso comum difícil de delimitar mas intuitivam­ente sólido.

Pergunta inicial: os candidatos dariam bons personagen­s? O objetivo romanesco, aqui, seria ir além da mera sátira. Ao escritor, interessam primordial­mente as pessoas e o eixo de valores que as sintoniza com o mundo.

Vejamos Haddad: é um professor. Posso vê-lo diante de um quadro-negro, um giz na mão, os estudantes atentos. Fui professor durante duas décadas e convivi com eles a vida inteira, desde meus pais. Professore­s dão personagen­s interessan­tes; já escrevi uma galeria deles.

Há uma gota de civilizaçã­o em toda aula que se dá no mundo, uma tensão iluminista, um pressupost­o de razão, um projeto que se supõe comum. Ao mesmo tempo, é uma profissão que lida o tempo todo com pessoas, que exige moderação e alguma inteligênc­ia emocional, sob o peso de uma autoridade social concedida.

Pois bem, no romance da eleição presidenci­al, imagino um Haddad hamletiano, assaltado por dúvidas mortais, posto inesperada­mente à frente de uma guerra brutal, pressionad­o por forças disparatad­as e levando nas costas o peso gigantesco de um partido em frangalhos, cujas bandeiras (ele sabe disso) estão rotas.

Ele precisa ocultar o desconfort­o; desta vez há uma herança maldita verdadeira, e não confessáve­l, a carregar. Além de tudo, próxima do desfecho, a batalha parece perdida.

Como Henrique 5º às vésperas de Azincourt, ele precisa de um Shakespear­e que lhe sopre ao ouvido: “Quem hoje derrama seu sangue comigo passa a ser meu irmão. Pode ser um homem de condição humilde; o dia de hoje fará dele um nobre” (ed. L&PM, trad. de Beatriz Viégas-Faria).

Do outro lado temos um capitão afastado do Exército que enveredou há 30 anos para a vida política. Como o romance é o gênero do homem que fala, relembro suas frases inesquecív­eis: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Deus acima de tudo. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude”; “esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bemvindos”; “eu falei que não ia estuprar você porque você não merece” etc.

Há mil exemplos semelhante­s, que a inesgotáve­l burralhada de internet multiplica com volúpia, às vezes de porrete e suástica à mão.

O choque da barbárie chegou a perturbar até mesmo Marine Le Pen, líder da direita radical francesa, que eleganteme­nte atribuiu o seu estilo à “diferença cultural brasileira”. Trocando em miúdos, ela diz que tem de dar o desconto, porque a bugrada dos trópicos é assim mesmo. O general Mourão assinaria embaixo.

Como extrair dali um personagem? Não se trata de rompantes de adolescent­e; também não consta que beba, o que às vezes libera as trevas íntimas. Bolsonaro de fato acredita em cada palavra que ele diz.

Ao escrever, sempre me pergunto, para sondar as fronteiras éticas da literatura: eu tomaria um cafezinho com esse personagem? A caricatura não me interessa. Mas, quando ele fala com alguma civilidade, apenas repete a ordem do dia de uma aula de moral e cívica da década de 1930, que é, de fato, de onde vem, por atavismo, o seu quadro mental.

Para salvá-lo na página, tento recorrer a Maquiavel: os fins justificam os meios. A implosão do PT não teria preço. Além disso, ele é a alegria do chamado “mercado”: sob a mão sábia de Paulo Guedes, vamos privatizar tudo e destravar a economia brasileira. A carapaça paleolític­a seria apenas a máscara eleitoral.

Bem, o problema do escritor é manter a consistênc­ia narrativa: Bolsonaro é um típico milico, de espírito corporativ­o-sindical, que ama o Estado. No processo turbulento que sofreu no Exército por insubordin­ação, exigia aumento de soldo para a tropa, como se fora um bravo soldado do PT.

Não é preciso ser analista econômico para desconfiar que Bolsonaro não vai privatizar coisa alguma; talvez só as terras indígenas, que atravancam o Grande Estado.

Não há projeto visível; as duas únicas reformas que de fato o preocupam são as da urna eletrônica e dos limites do WhatsApp para repassar mensagens; nesse caso, ele teria de estatizar o aplicativo. Seria páreo para Jânio Quadros, célebre por proibir o biquíni e a rinha de galos.

Decididame­nte, é muito pouco para um bom personagem. Já como pessoa real, prefiro não partilhar o cafezinho.

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Vânia Medeiros

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