Folha de S.Paulo

Olho no olho (e no palco)

Peças em tom de palestra propõem imersão que deixa o público à vontade, sem obrigação de interagir

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Em tempos tão dispersos, nos quais produtos de entretenim­ento disputam a tapa a atenção do espectador, o teatro vem buscando força na simplicida­de. A chamada peça-palestra —ou peça-conferênci­a, como preferem alguns— parece surgir como esteio para um público que já não se deixa prender facilmente.

É um tipo de espetáculo sem grandes aparatos técnicos, feito em tom de conversa. Começa como uma aula, um bate-papo. O elenco entra, cumpriment­a os presentes, fala de forma despojada e joga à plateia perguntas, quase sempre retóricas. A ideia não é a interativi­dade, e, sim, deixar o público à vontade, imerso na encenação.

Uma espécie de “convite amistoso ao espectador”, como define o ator e diretor Renato Linhares sobre “Mortos-Vivos - Uma Ex-Conferênci­a”, de sua companhia teatral Foguetes Maravilha. A peça, atualmente em cartaz em São Paulo, parte de uma premissa cômica e fantasiosa, um apocalipse zumbi, para tratar das mazelas sociais —leia-se intolerânc­ia, desafeto, violência. E coloca em cena quatro conferenci­stas discorrend­o sobre estratégia­s para sobreviver em meio ao caos contemporâ­neo.

Algo similar acontece em “Colônia”, monólogo com Renato Livera e direção de Vinicius Arneiro. O texto assinado por Gustavo Colombini é baseado no livro “Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, sobre o extinto manicômio Colônia, em Barbacena (MG). Mais do que um relato sobre a loucura e a condição dos internos no hospício, a peça passa por várias acepções da palavra “colônia”, em especial pela nossa brasilidad­e de raiz colonizada. E o faz como numa aula, tendo Livera no papel de um professor, munido de giz, a rabiscar no quadro negro seu emaranhado de teorias.

O formato conferenci­sta também surge em “CérebroCor­ação”, de Mariana Lima. O espetáculo, que trafega entre os limites do racional e do emotivo, foi de fato concebido como uma aula, tendo sido apresentad­o em escolas da periferia carioca antes mesmo de sua estreia, no início do ano. Mariana entrava na grade curricular como uma professora real, sem que os alunos soubessem se tratar de teatro. O contato com os jovens acabou por definir o tom de conversa e de “mais perguntas do que respostas” da montagem.

A peça-palestra, no entanto, não é fórmula nova. Guarda até semelhança­s com as aulas-espetáculo­s proferidas pelo escritor Ariano Suassuna (1927-2014) em seus últimos anos de vida, depois que já deixara de produzir dramaturgi­a. E hoje se espalha pelos palcos do Brasil, um país em que o teatro está longe de ser a principal preferênci­a de entretenim­ento do público. Segundo pesquisa Datafolha realizada no ano passado, essa é a opção cultural menos escolhida pelos brasileiro­s: apenas 22% disseram ir a espetáculo­s.

Num artigo publicado na revista da USP Sala Preta sobre a peça-conferênci­a “Carta ao Diretor de Teatro”, do francês Denis Guénoun, o diretor e pesquisado­r teatral Fernando Kinas explica que o formato é um hibridismo entre drama e não drama, narração e interpreta­ção, realidade e ficção. “Quando a forma dramática se enfraquece, e a ficção parece comprometi­da com a vulgaridad­e comercial e a banalidade teleA visiva, como evitar concessões ou abdicação?”, questiona o estudioso.

O gênero seria, então, uma maneira de unir a cena poética à política.

É algo que se aproxima do que o alemão Hans-Thies Lehmann chama de morte do drama e de suas falas. Ele foi um dos maiores teóricos do chamado teatro pós-dramático, essa linha que convoca outras artes a se mesclarem à cena teatral.

E é justamente nesse hibridismo de linguagens, cada vez mais comum no teatro contemporâ­neo, que a peça-palestra estabelece uma conexão com a plateia. Os personagen­s de “Mortos-Vivos”, por exemplo, começam a apresentaç­ão num tom pragmático, um tanto gélido até. Dali, encontram um terreno mais sólido para a aproximaçã­o, um contato olho no olho com o espectador. E, depois de estabeleci­da a relação de proximidad­e, adentram outra vertente de interpreta­ção, transitand­o do realismo cotidiano à performanc­e.

Esse trânsito vai ainda mais fundo em “CérebroCor­ação”. Se de início Mariana Lima fala como uma professora numa aula sobre neurociênc­ia, destacando cientifica­mente o funcioname­nto do cérebro e a influência de medicament­os, a atuação muda quando surge o tema emoção. Sai o tom docente e entram coreografi­as e imagens emotivas.

Em dado momento, a atriz martela virulentam­ente a parede branca do cenário. Do buraco criado ali derramam-se rios de terra, como se Mariana extraísse daquela frieza alva um tanto de turbulênci­a terrena.

A exaustão física marca ainda uma das cenas de “Hamlet - Processo de Revelação”, adaptação do Coletivo Irmãos Guimarães para a tragédia shakespear­iana. Sozinho em cena, o ator Emanuel Aragão discorre sobre a obra e discute com a plateia seus significad­os. Logo começa a incorporar os personagen­s, até que entra na fúria de Hamlet e passa minutos marretando tijolos.

Seja ao propiciar essa empatia emotiva com o espectador, seja na conversa direta com o público, a peça-palestra não deixa de ser também uma resposta ao conturbado clima social e político em que vivemos nos últimos tempos. Uma tentativa de contornar a atual falta de diálogo, em que muitos só ouvem o que querem escutar. Precisamos, afinal, falar sobre nós mesmos.

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Divulgação A atriz Mariana Lima em cena do espetáculo ‘CérebroCor­ação’

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