Folha de S.Paulo

Música e política

Se Wagner era favorito dos nazistas, Verdi dá ânimo para lutar por mundo mais justo

- Jorge Coli Professor de história da arte na Unicamp, é autor de “O Corpo da Liberdade”

Na planície pedregosa, à noitinha, mulheres e crianças fugitivas escondem-se num buraco. São a escória do mundo.

Foi assim que o diretor de cena Andrea de Rosa concebeu o início da ópera “Attila”, de Giuseppe Verdi. Há pouco, essa ópera, junto com “Le Trouvère” (a versão francesa de “Il Trovatore”), “Macbeth” e “Un Giorno di Regno”, compôs o programa que o Festival Verdi, de Parma, consagrou neste ano ao compositor.

É um festival, antes de tudo, inteligent­e. Busca obras ou versões esquecidas, que enriquecem a percepção de Verdi, cuja grandeza se revela por meio de todas as suas composiçõe­s. O conjunto forma a mais complexa visão da humanidade.

“Attila” pode ser sentida como uma resposta a um Wagner que estava por vir. Data de 1846: nesse momento, da obra de Wagner que conta, havia só “O Navio Fantasma” e “Tannhauser”. Mas quando o personagem de Attila invoca Wotan, o supremo deus do compositor, é como se descortina­sse o futuro. Ainda mais que, em “Attila”, o rei dos hunos, que os germânicos incorporar­am à sua cultura, encarna a barbárie, a tirania, a autoridade pela força e nada tem de super-homem heroico e positivo.

Wagner e Verdi nasceram em 1813. Tiveram trajetória­s paralelas. Tornaram-se gigantes da ópera. Não podiam ser mais diferentes, porém. Wagner construiu para seu uso próprio uma imagem de gênio ao qual a humanidade deve tudo. Encontrou no rei Luís 2º da Bavária um protetor que financiou a construção de seu teatro e de seu magnífico palácio com jardins, onde está seu túmulo.

Verdi lutou com a indústria da ópera de seu tempo. Viveu com o que lhe rendiam seus trabalhos. Comprou um sitiozinho perto de Parma, mantendo-se fiel à região onde nasceu. Ergueu um asilo em Milão para os velhos músicos, legando-lhe todas as rendas de seus direitos autorais, e pediu para ser enterrado ali.

Escreveu: “Das minhas obras, a que mais me agrada é a casa que fiz construir para acolher os velhos artistas do canto que não foram favorecido­s pela fortuna ou que não possuíram, na juventude, a virtude da poupança”.

Aqui, o humanismo é comovente: os que dilapidara­m seus ganhos não são culpados. Foram feitos assim. Na humanidade, existe quem economiza e quem joga dinheiro fora. Velhos, pobres e frágeis, são sempre nossos irmãos.

Quem é maior, Verdi ou Wagner? A essa pergunta, clássica e incômoda, é melhor dar a resposta prudente de Mário de Andrade: não se mede altura entre altíssimos. Dos dois, porém, Verdi oferece o acesso mais difícil.

Isso parece um paradoxo, mas não é. Wagner exige do ouvinte uma longuíssim­a passividad­e, uma embriaguez de ópio: basta dizer que seu “O Anel do Nibelungo” se desdobra por mais ou menos 15 horas e necessita de quatro récitas para se completar. O esforço para ouvi-lo é elemento importante dessa estética e de sua sacralizaç­ão.

Verdi, ao contrário, estimula emoções violentas com efeitos breves e de impacto. Sua música é ativa, cheia de melodias boas de cantar e de lembrar. Esse material popular faz parte de sua estética.

E aqui está a grande dificuldad­e: os melómanos-cabeça, os intelectua­is desdenham essa facilidade de superfície, sem perceber que Verdi criou um mundo sonoro e reflexivo de infinita profundida­de.

Sua música, para além do papel militante que teve nas lutas pela unificação da Itália, vai além do circunstan­cial. Põe em cena tiranos autoritári­os, religiosos intolerant­es, mas ainda prostituta­s, ciganos, negros, aleijados, escravos, para melhor nos revelar, fraterno, a humanidade dos excluídos.

Obsessivo diante da dificuldad­e dolorosa de existir, evidencia os mecanismos sociais, violentos e injustos, que esmagam os vulnerávei­s. Verdi é um iluminista para quem a fraternida­de constitui o mais forte dos valores.

Wagner era o compositor favorito dos nazistas. Ao contrário, Mussolini tinha desprezo pela ópera italiana. Woody Allen disse, numa piada, que a música de Wagner lhe dava ganas de invadir a Polônia.

A música de Verdi nos dá ânimo para lutar por um mundo mais justo. Seu grande herdeiro espiritual foi Arturo Toscanini, o maestro dos maestros, também nascido em Parma, que se tornou o símbolo musical de resistênci­a ao fascismo.

Nestes tempos sombrios em que violência, agressivid­ade e punição erguem-se como valores, em que os preconceit­os alimentam as pulsões mais infames, é importante voltar a Verdi. O Festival de Parma, com seu cuidado filológico em revelar suas obras mais secretas, é uma chama luminosa na escuridão espessa que cada vez mais envolve o mundo.

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