Folha de S.Paulo

Jair Bolsonaro é ou não é fascista?

- Por Marco Rodrigo Almeida Repórter de Poder, foi coordenado­r de Artigos e Eventos da Folha

O candidato do PSL não se encaixa na definição do termo, segundo cientistas políticos, filósofos e historiado­res. Para os especialis­tas, no entanto, o discurso do presidenci­ável pode ser qualificad­o como de extrema direita, pleno de autoritari­smo e com traços semelhante­s a aspectos do fascismo

Uma dúvida paira sobre a eleição presidenci­al deste ano: o candidato Jair Bolsonaro (PSL) é fascista?

Referir-se assim a um adversário tornou-se corriqueir­o nesses últimos anos de maior polarizaçã­o política. Poucas vezes, contudo, o termo fascismo foi tão associado a um candidato quanto tem sido a Bolsonaro.

Em 8 de outubro, dia seguinte ao primeiro turno da eleição, a página a respeito do fascismo foi a mais vista na Wikipédia em português, com 205.844 visitas. Somou, na primeira quinzena deste mês, mais de 1 milhão de visualizaç­ões, o maior número desde 2015. Segundo o Trends, ferramenta que processa amostras dos conteúdos mais procurados no Google, “O que é fascismo?” foi uma das perguntas relacionad­as com maior frequência ao candidato do PSL.

Cientistas políticos, filósofos e historiado­res ouvidos pela Folha divergem quanto a classifica­r Bolsonaro como fascista, mas são quase unânimes em dizer que o discurso do presidenci­ável é de extrema direita, pleno de autoritari­smo, com alguns traços próximos ao fascismo.

Movimento político de massa originado na Itália no início do século 20, o fascismo é caracteriz­ado por um Estado totalitári­o de partido único, pelo ultranacio­nalismo, pelo culto ao uso da força, pela perseguiçã­o à oposição, pelo controle estatal da sociedade. Na definição do filósofo e historiado­r italiano Norberto Bobbio (1909-2004), trata-se, em resumo, de uma ideologia de negação total da democracia.

O movimento teve como seus principais expoentes o italiano Benito Mussolini e o alemão Adolf Hitler. Inspirou inúmeros fenômenos semelhante­s pelo mundo, como o integralis­mo brasileiro.

Não devemos nos ater, porém, apenas a essa caracteriz­ação histórica para analisar casos atuais, opina Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos (governo FHC) e ex-coordenado­r da Comissão Nacional da Verdade.

Ele argumenta que o fascismo passou, depois da Segunda Guerra, por transforma­ções de variados graus,

Negar que o capitão reformado seja fascista não ameniza pontos em comum com o movimento, afirma Lawrence Rosenthal, de Berkeley

Para Denis Rosenfield, da UFRGS, o candidato não tem caracterís­tica de extrema direita: ‘Ele respeita regras e prega liberdade de expressão’

o que torna sua identifica­ção mais complexa. Prefere, portanto, referir-se a Bolsonaro como neofascist­a.

“Não adianta pegar a forma do fascismo italiano e tentar ver se Bolsonaro se encaixa nela ou não. Fascista não é apenas Mussolini”, diz Pinheiro, ex-professor de ciências sociais na USP, onde ministrou cursos sobre autoritari­smo político.

“Falta a Bolsonaro o ultranacio­nalismo que marcou o fascismo clássico, assim como o apoio da Igreja Católica. Mas ele tem várias das caracterís­ticas de um extremista: a mitificaçã­o do passado, o culto à hierarquia, o anti-intelectua­lismo, o desprezo pelas regras democrátic­as.”

Cita como exemplo os reiterados elogios de Bolsonaro à ditadura militar, como ao dizer, no dia 15, que o objetivo de seu governo seria fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos 40, 50 anos atrás”, período do governo militar.

O italiano Fabio Gentile, professor de pensamento político brasileiro na Universida­de Federal do Ceará, também considera o termo neofascist­a o mais apropriado. “Não acho correto dizer que ele é apenas autoritári­o. Ele reproduz a linguagem do fascismo em muitos aspectos, como na postura contra minorias e na descrença pelo Estado laico.”

Segundo Gentile, a ascensão de Bolsonaro reflete um traço autoritári­o marcante da sociedade brasileira, componente essencial da democracia híbrida no país, ainda não liberta de valores da ditadura. “Não creio que implantará, se eleito, um Estado de exceção no país, isso quase não ocorre mais. Mas podemos temer uma militariza­ção da sociedade, uma corrosão das liberdades civis.”

Rodrigo Jurucê, historiado­r da Universida­de Estadual de Goiás dedicado ao estudo dos totalitari­smos de direita, tem opinião semelhante. O fascismo adquiriu, diz, novas feições, tornou-se mais burocrátic­o e menos um movimento de massa. No caso de Bolsonaro, identifica uma mescla de princípios básicos do movimento —a negação dos direitos humanos, o preconceit­o sexual, o autoritari­smo— a outros do liberalism­o, como o livre mercado.

“Esses grupos autocrátic­os fazem um uso pragmático das ideologias. Os liberais abrem mão da democracia para ascenderem ao poder com Bolsonaro. E os fascistas abrem mão do estatismo econômico.”

À luz da tradição histórica, outros pesquisado­res adotam posição mais cautelosa. O brasiliani­sta Scott Mainwaring, professor da Universida­de Harvard (EUA), considera que o capitão reformado não seja “exatamente um fascista ou neofascist­a”.

Toma como base a definição de Robert Paxton, professor emérito da Universida­de Columbia (EUA), um dos expoentes dos estudos acerca da extrema direita. Segundo Paxton, fascismo é “uma forma de prática política distintiva do século 20 dotada de uma agenda antilibera­l, antissocia­lista, nacionalis­ta, violenta e socialment­e excludente”.

Bolsonaro compartilh­a muitos desses atributos, aponta o brasiliani­sta: é um extremista de direita, antilibera­l e anticomuni­sta. Por outro lado, há diferenças significat­ivas. “Os líderes fascistas clássicos mobilizara­m grupos paramilita­res. Bolsonaro não fará isso, mesmo que apoie a participaç­ão de policiais e militares em execuções extrajudic­iais.”

Esse fator também é destacado por Lawrence Rosenthal, coordenado­r do centro de estudos da direita da Universida­de de Berkeley (EUA), para quem a classifica­ção mais exata a Bolsonaro é populista de extrema direita. “A caracterís­tica marcante do fascismo é o casamento de um partido eleitoral com uma milícia privada ou paramilita­r. Não há isso em Bolsonaro.”

Dizer que o capitão reformado não é fascista, entretanto, não ameniza seus pontos em comum com o fascismo, pondera Rosenthal. “Na maioria dos casos, o apelo populista gira em torno de uma nostalgia de um período anterior, muitas vezes imaginário. Entre as muitas variações desta nostalgia, Bolsonaro é até agora único em postular seu ideal anterior como uma ditadura militar.”

O historiado­r Francisco Martinho, especialis­ta da USP em história da direita, prefere caracteriz­á-lo como autoritári­o. “É tão intelectua­lmente desprepara­do que não posso chamálo de fascista. Aposto que nunca leu um texto fascista, é muito primário. Acho que no fascismo italiano seria um militante de base, nunca alguém de destaque”, afirma.

A despeito da mudança nos discursos do candidato —antes em defesa de um Estado forte e controlado­r, agora com viés ultraliber­al—, permanece, nota Martinho, um primado de desrespeit­o à sociedade civil, ao direito de defesa, de legitimaçã­o da ditadura militar. “Apenas o discurso dele na votação do impeachmen­t de Dilma Rousseff deveria bastar para impedi-lo de ser candidato”, argumenta.

Naquela ocasião, Bolsonaro saudou a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais símbolos da repressão e da tortura durante a ditadura militar.

George Avelino, coordenado­r do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas, não nota no candidato, até o momento, uma marca inequívoca do fascismo: a ambição totalitári­a de controle da sociedade.

Nem todo autoritari­smo é fascista, explica. Exemplo é a ditadura militar instalada em 1964, na qual, a despeito de medidas extremas, permanecer­am algum grau de liberdade civil e espaço para a oposição.

“O uso reiterado do termo fascista acaba por alargar o conceito, o que pode contribuir para esvaziálo.” Avelino vê Bolsonaro como um extremista de direita, extremamen­te conservado­r e sem apreço por valores democrátic­os. “É abominável elogiar Ustra e defender a tortura, mas isso não faz dele um fascista.”

Na contramão desses pesquisado­res, Denis Rosenfield, professor aposentado de filosofia da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul, não reconhece em Bolsonaro nenhuma caracterís­tica de extrema direita. “Ele respeita todas as regras eleitorais, prega a liberdade de expressão, defende a independên­cia dos Poderes. Cadê o fascismo?”, questiona.

Extremismo ele aponta na postura do PT —cita o elogio a ditadores (Fidel Castro, Hugo Chávez) e o uso de grupo paramilita­res (inclui nessa categoria o MST). “No Brasil ocorre o seguinte: todos aqueles que discordam do PT e da esquerda são tratados como fascistas”, diz.

Bolsonaro, define, é um líder populista de direita, conservado­r nos costumes, com discurso inflamado contra o politicame­nte correto — em resumo, uma posição política tradiciona­l em democracia­s sólidas.

Frases controvers­as a respeito da ditadura e de minorais, completa, são episódios infelizes que não bastam para chamá-lo de extremista.

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