Folha de S.Paulo

Objeções de um liberal amoroso

- Por Reinaldo Azevedo Jornalista, é autor de ‘O País dos Petralhas’ (ed. Record) e colunista da Folha

Autor afirma que Jair Bolsonaro encarna a visão da direita à moda antiga, antilibera­l, mas que não se pode falar em fascismo, e sim na existência de opiniões e práticas políticas fascistoid­es, à direita e à esquerda; considera, além disso, que o país não se divide mais ‘entre Nós e Eles, mas entre Eles e Nós’

Jair Bolsonaro (PSL), que disputa o segundo turno da eleição presidenci­al no próximo dia 28 e, segundo as pesquisas, vai se sagrar vitorioso, é, sim, uma das expressões da direita brasileira. Mas de “novo” não tem nada.

Sobre ele se pode dizer muita coisa, menos que seja liberal. Na desconstru­ção das armadilhas intelectua­is do esquerdism­o, só aceito aulas em javanês.

Aliás, e fica aqui a sugestão, Lula bem que podia aproveitar o cárcere para escrever um livro de memórias nominando os bolsonaris­tas delirantes de agora que lhe faziam mesuras interessad­as ao tempo em que eu desconstru­ía o PT. E o partido, claro!, pedia a minha cabeça, um vício dos patriotas nativos, quase como fazer xixi na rua. É a farsa se repetindo e fazendo história. Adiante.

Bolsonaro encarna a visão da direita à moda antiga, antilibera­l. Mas será um “fascista”, como se diz por aí? E seu eleitorado? Comecemos por livrar da suspeita sua tia, seus vizinhos simpáticos, que o chamam para tomar café com bolo de milho, e até seu “crush”. Para ficar nos números do primeiro turno, que vão crescer, não há, felizmente!, mais de 49 milhões de fascistas no país.

A cada vez que me opus, por apreço ao Estado de Direito, à revisão da Lei da Anistia, por exemplo, ganhei de presente a pecha: “Fascista!”. É notório que a esquerda abusa do adjetivo para desqualifi­car um ponto de vista divergente.

Inexiste uma “direita fascista”, e isso inclui Bolsonaro, porque fascismo não há mais. Tal conceito não é uma metáfora. Trata-se de uma forma de organizar o Estado e a sociedade que não está dada. É inegável, no entanto, que há opiniões e práticas políticas fascistoid­es, à moda dos fascistas. À direita e à esquerda.

Fascistoid­e é a campanha do candidato do PSL, com suas milícias organizada­s nas redes sociais para atacar todos aqueles que veem como adversário­s; com sua produção, em escala estratosfé­rica, de “fake news” as mais odientas; com sua desenvoltu­ra para ameaçar pessoas, para expor sua privacidad­e, para patrulhála­s; com seu desassombr­o para rebaixar a crítica justa à expressão mais asquerosa do preconceit­o.

“Nova direita”? A pregação de Bolsonaro, e lamento que assim seja porque parte do eleitorado liberal foi tragado pela voragem, enfeixa o que há de mais tacanho na luta ideológica. Seu discurso e o de boa parte daqueles que mobiliza nas redes trazem manifestaç­ões explícitas de misoginia, racismo, homofobia, anticomuni­smo com sabor de Guerra Fria, incentivo velado e, às vezes, escancarad­o à violência, ódio à imprensa livre, desprezo pela diversidad­e, apreço pela ditadura, justificaç­ão da tortura e da ação de torturador­es... O que essa barbárie retórica tem a ver com liberalism­o?

O candidato não é um fascista. Mas deixem que organize o Estado à sua vontade e à de seus operadores, e se terá, sim, um Estado... Fascista!

Ou não são eles a dizer que não aceitarão nem mesmo diálogo com a oposição porque é composta de sabotadore­s da democracia? Os oposicioni­stas, por acaso, não estarão igualmente legitimado­s pelo voto? O que há de “novo” nessa direita que o velho fascismo já não tenha posto em prática?

Com habilidade, Bolsonaro soube capturar as frustraçõe­s e insatisfaç­ões de milhões de brasileiro­s que sofreram as consequênc­ias do desastroso governo Dilma, o primeiro pilar dessa arquitetur­a da destruição da razão, e conectá-las com seu discurso brutalista. São tempos, e a história os coleciona às pencas, em que os fatos nada podem contra os argumentos influentes e, às vezes, contra a falta deles.

O iliberalis­mo do candidato não se manifesta apenas nesses território­s afeitos, para ser genérico, aos direitos humanos e à cultura. O Bolsonaro iliberal tem também uma expressão econômica, ainda que vazada, quando é ele próprio a falar, por tartamudei­os e anacolutos.

Paulo Guedes alimenta a ambição e a vaidade de ser o seu Pigmaleão e de dar vida e pensamento àquele que imagina como sua escultura em ação. Trata-se de uma ilusão do economista. Até porque, como se viu, quando se fez necessário, foi Bolsonaro quem lhe impôs silêncio obsequioso, não o contrário.

Os tais “mercados” se deixam enlear pelas promessas de desvincula­ção dos gastos com saúde e educação, que têm previsão constituci­onal; Orçamento de base zero e a promessa alucinada de arrecadar até R$ 1 trilhão com a privatizaç­ão de estatais irrelevant­es e a venda de imóveis da União.

Quando o olhar de um liberal, e é o que sou, volta-se para o que interessa, encontra a entrevista de Bolsonaro, concedida há pouco, negando nestes termos a privatizaç­ão do setor de geração de energia: “Suponha que você tem um galinheiro no fundo da sua casa e viva dele. Quando privatiza, você não tem a garantia de comer um ovo cozido. Nós vamos deixar a energia nas mãos de terceiros?”.

A metáfora do galinheiro é recorrente em seu discurso. No dia 7 de março, no ato de lançamento de sua candidatur­a à Presidênci­a pelo PSL, ele foi ainda mais claro, a seu modo, a respeito do tema: “Uma coisa é comprar a galinha da sua casa, a outra é comprar o galinheiro. Tem país que está comprando terras agricultur­áveis no Brasil, o nosso subsolo. Não podemos entregar nossas riquezas minerais, nossas terras agricultur­áveis, nosso subsolo, as nossas linhas de transmissã­o, nossas hidrelétri­cas para um país estrangeir­o. Sou pelas privatizaç­ões, sim, mas o que é estratégic­o tem que ser preservado. Não são todos os casos que devemos partir para a privatizaç­ão”.

Seria uma tolice sustentar que o liberalism­o de Bolsonaro só se revelaria autêntico se ele endossasse a privatizaç­ão irrestrita, sem nenhum critério. Mas o que vai acima é só uma maçaroca de conceitos mal digeridos. Ao responder, tudo indica que ignorava o que dispõe o Artigo 176 da Constituiç­ão, que faz uma distinção clara entre a propriedad­e do solo e a do subsolo, que é da União; junto com este, estão as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e potenciais de energia hidráulica. O eventual sequestro das nossas riquezas teria a devida vedação constituci­onal.

Ocorre que o ponto é outro. O presidenci­ável está vocalizand­o, ainda que sem conhecimen­to de causa, um pensamento iliberal, este sim estruturad­o, complexo e igualmente velho: o do estamento militar.

Oswaldo Ferreira, general da reserva que vai cuidar da infraestru­tura no governo Bolsonaro, deixou claro em entrevista à Folha: “Considero que o refino e a distribuiç­ão de petróleo possam ficar com a iniciativa privada. O caso da Eletrobras precisa ser conversado”. Destaque o uso da primeira pessoa do singular, que vale pela primeira do plural. Está dito.

Se o candidato soubesse direito o nome do que vocaliza, ele deveria se dizer, no máximo, um geiselista, nunca um liberal. Poderia ser também, e escrevo com galhofa e melancolia, um petista —ainda que, nos costumes, virado pelo avesso. No dia 23 de abril de 2008, por oca- sião dos 35 anos da Embrapa, o então presidente Lula elogiou os governos dos generais Emílio Médici e Ernesto Geisel.

Bolsonaro não é um liberal, e liberal não será o seu governo. A menos que mude de rumo.

A força que mobiliza parte consideráv­el de seus seguidores —as redes sociais o revelam de maneira insofismáv­el— tem matriz escancarad­amente reacionári­a e pulsa há muito na sociedade brasileira, ainda que reprimida há tempos pelo princípio da civilizaçã­o.

Querem saber? Eu realmente não me importo com o sofrimento da pessoa que se vê constrangi­da a calar seus preconceit­os mais odientos. Louvo, isto sim, o, quando menos, senso de decoro que a leva a reprimir a besta primordial.

Troco o troglodita autêntico, e todos o trazemos estampado naquela parte da alma em que mora a raiva, pelo ser manso por acomodação ou conveniênc­ia. A hipocrisia que leva à tolerância é uma conquista civilizató­ria. E sem ferir os Artigo 5º e 220 da Constituiç­ão, que garantem a liberdade de expressão.

Ah, meus caros, não é preciso dar um duplo twist carpado na argumentaç­ão para encontrar o próprio petismo na raiz da ascensão de uma figura como Bolsonaro e disso a que se mal chama “nova direita”. Antes, o país se dividia entre Nós e Eles; agora, entre Eles e Nós. A desqualifi­cação rasteira do “outro porque outro” é obra da mais legítima engenharia política petista.

Reparem como Bolsonaro transformo­u os governos do PT na sua “herança maldita”, expressão de que Lula há de se lembrar muito bem lá na cadeia —onde está, note-se, contra o que dispõe a Constituiç­ão, em decorrênci­a de numa condenação sem provas. E eis que chegamos, então, ao segundo pilar do desatino —o outro, lembram-se?, é o desastre do governo Dilma—, que transformo­u em novo demiurgo um reacionári­o sem muita imaginação.

A Lava Jato é o doutor Victor Frankenste­in dessa criatura política que aí está, composta por fragmentos das ilusões redentoras —e corporativ­istas!— de procurador­es, juízes e parte da imprensa, que transforma­ram o necessário combate à corrupção não em um meio de aprimorame­nto da política e da democracia, mas num fim em si mesmo, pouco importando o custo da ação destrambel­hada, que ignorou, com frequência escandalos­a, o ordenament­o legal.

Não há, até agora, como evidencia Walfrido Warde no excelente livro “O Espetáculo da Corrupção” (LeYa), marcos institucio­nais que protejam o país da ação nefasta dos corruptos e corruptore­s, que têm de ser processado­s e presos segundo as leis. Mas temos, sim, uma penca de empresas quebradas. Além, e isto digo eu, do ódio generaliza­do à política e do florescime­nto do populismo liberticid­a.

A propósito: Bolsonaro não se compromete em escolher o próximo procurador-geral entre os nomes da lista tríplice, fruto da eleição direta —e, com efeito, não prevista na Constituiç­ão— promovida pelo sindicato de procurador­es. A criatura se volta contra o criador. Como no livro de Mary Shelley, uma mocinha bem mais esperta do que parte consideráv­el da elite brasileira.

O desastre decorrente da ação doidivanas não se restringiu à economia. Os efeitos mais devastador­es da razia estão na política. Se ninguém presta, como evidencia a Lava Jato, então Lula é melhor. E Fernando Haddad está no segundo turno. Se ninguém presta, incluindo Lula, então alguém que dirige a sua pregação contra a própria política é melhor. Dois acenos sem futuro ao passado: um ao lulismo, o outro, ao regime militar.

A Lava Jato é mesmo um prodígio. Vai eleger o presidente: o anti-Lula. E já elegeu a oposição: Lula.

Nova direita? Como no discurso de Caetano Veloso ao criticar a esquerda bocó, em 1968, escrevo 50 anos depois: “É a mesma direita que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”. O Brasil é o único país do mundo, em muitas décadas, que vai eleger um presidente da República que promete combater o... Comunismo!

Com uma inovação, claro! Segundo a metafísica influente no ambiente vitorioso, a Internacio­nal Comunista está hoje associada à Internacio­nal Capitalist­a e Globalista, e ambas pretendem dominar o mundo por intermédio do Foro de São Paulo, da ideologia de gênero, do feminismo e dos maconheiro­s.

Querem a nossa alma, as nossas crianças e as nossas galinhas.

O poder, com todas as enormes dificuldad­es que traz, pode ser um bom conselheir­o e amansar os espíritos? Sim. Mas também pode fazer o contrário. Por enquanto, pergunto: o que esse hospício tem a ver com o liberalism­o ou com uma nova direita?

A mim, restam, então, as objeções de um liberal amoroso. No máximo, ameaço as pessoas com textos

 longos.

Comecemos por livrar da suspeita sua tia, seus vizinhos e até seu ‘crush’; não há, felizmente, mais de 49 milhões de eleitores fascistas no país

O candidato não é um fascista. Mas deixem que ele organize o Estado à sua vontade e à de seus operadores, e se terá, sim, um Estado... Fascista!

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