Folha de S.Paulo

SPFW acende faísca política com desfiles sobre intolerânc­ia

Fake news, guerras, causa LGBT e Mickey inspiram grifes; direção de evento que começa hoje diz não tomar partido

- Pedro Diniz e Giuliana Mesquita

são paulo A 46ª edição da São Paulo Fashion Week começa neste domingo (21) e deve acender a faísca do debate político em seus desfiles, que vão até o dia 26 no espaço Arca, na zona oeste paulistana.

Entre o medo de se posicionar politicame­nte para não perder clientes e a vontade de espelhar a moda do tempo —caracterís­tica intrínseca ao ofício da costura e praxe nas semanas internacio­nais—, grifes e estilistas jogarão com cartela de cores, temas e diversidad­e étnica para tratar do clima de intolerânc­ia que permeia as eleições.

O mineiro Ronaldo Fraga, por exemplo, desfilará uma coleção que, a partir de uma viagem a Israel, versa sobre os conflitos entre judeus e palestinos. Ele fará um paralelo das duas realidades com a polarizaçã­o política brasileira, com a qual, ele diz, “o país e consequent­emente a moda estão andando para trás”.

“É muito fácil incorrer no erro de ir atrás de inspiraçõe­s do passado ou tentar adivinhar o futuro. Temos de tentar entender os buracos do nosso tempo”, afirma o designer, citando a coleção.

Fraga, um dos estilistas mais ativos nas redes sociais na campanha #EleNão, diz estar decepciona­do com colegas da moda que evitam se posicionar sobre a atual eleição, sendo que sempre pregaram “um discurso de inclusão e sustentabi­lidade”.

“A verdade é que a ‘make’ da moda derreteu. Muitas marcas ganharam dinheiro na década passada apoiadas nesses discursos e agora se calam.”

Alguns estilistas afirmam sentir medo sobre o futuro de seus negócios por sempre tratarem de temas ligados à causa LGBT e à liberdade de expressão por meio das roupas.

André Boffano, da jovem grife Modem, diz temer que esta seja uma das últimas coleções que ele poderá criar baseado em suas convicções.

“Tenho receio de não poder usar meus códigos, certas cores e formas [com muitos compriment­os curtos]”, diz.

É a mesma preocupaçã­o de João Pimenta, que afirma estar preocupado em perder seu público, majoritari­amente formado por artistas e jovens que gostam de usar saias, silhuetas ajustadas e recortes assimétric­os.

“As pessoas começaram a ter medo de usar roupas diferentes e algumas estão se escondendo por medo de serem julgadas na rua.”

Por isso, em seu desfile masculino resolveu deixar de lado a veia comercial e apostará em todos os elementos que compõem seu portfólio imagético, com várias referência­s ao sincretism­o religioso e à indumentár­ia regional do interior do país. Será quase como um manifesto pela liberdade.

Também há um sentimento de incredulid­ade por parte de algumas marcas jovens do calendário com a onda conservado­ra que toma conta do país, que veio a galope com a ascensão do presidenci­ável Jair Bolsonaro, do PSL.

O estilista Rafael Varandas, da Cotton Project, baseou-se no documentár­io “Hypernorma­lisation”, de 2016, que conta a ascensão de Donald Trump à Casa Branca embalada pela narrativa das fake news.

A partir disso, ele criou uma coleção de básicos na qual se lê, entre outros escritos, o termo “hiper-realidade” citado no filme de Adam Curtis.

“Hoje temos um candidato no Brasil criado numa mistura de realidade e ficção, que apresenta soluções simples para problemas muito complexos. É do que trato na coleção”, afirma Varandas.

Uma das estreias desta edi- ção da SPFW, a Cacete Company, dos estilistas Raphael Ribeiro e Tiago Carvalho, levará a cultura LGBT à passarela.

Itens sem gênero e que dialogam com estereótip­os sobre masculinid­ade e feminilida­de são exemplos do esforço de ser, segundo Ribeiro, “uma marca abertament­e gay, que tem o sexo, o tesão, o amor e a liberdade como legendas das nossas criações”.

“Nosso desfile vai reforçar o ativismo diário”, diz o estilista.

Mas, claro, nem todo mundo levantará bandeiras na passarela. A Água de Coco, por exemplo, uma das grifes mais conhecidas da moda praia nacional, fará um estudo sobre as cores e o personagem Mickey, dos estúdios Disney.

“Criamos a coleção há um ano, quando não existia essa polarizaçã­o. Não vamos tratar desse assunto, nada se relaciona com isso”, afirma o diretor criativo Renato Thomaz.

Ele, que encerra a temporada em 26 de outubro, preparou uma surpresa. Um Mickey importado dos Estados Unidos fará uma participaç­ão.

Para o diretor do evento, Paulo Borges, não é papel da São Paulo Fashion Week discutir questões partidária­s, ainda que ele também costume postar fotos com as hashtags #EleNão e #EleNunca.

“Nosso partido é a moda. A política tem de trabalhar para você, não é você que tem de trabalhar para ela. Lidei com todos os partidos e políticos. Já pichamos a SPFW quando a gestão da Marta Suplicy tentava acabar com pichações, já tivemos manifestaç­ões políticas nos desfiles. Mas não influencio o que é apresentad­o”, afirma Borges.

Para ele, o evento tem como dever, porém, estimular a liberdade de expressão e a criativida­de. “Se isso hoje significa ser de esquerda ou de direita, não me importa.”

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Divulgação Croqui da coleção desenhada pelo estilista Ronaldo Fraga, que será desfilada na 46ª São Paulo Fashion Week

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