Folha de S.Paulo

As milícias dos cidadãos de bem

Pesquisado­r classifica a plataforma de Jair Bolsonaro para a segurança pública como superficia­l e lembra que o candidato do PSL, favorável à liberação do porte de armas, já defendeu grupos de extermínio

- Por Bruno Paes Manso

Doutor em ciência política e pesquisado­r do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é jornalista e coautor de ‘A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil’ (Todavia), com Camila Nunes Dias

Muitos analistas dizem que a força da candidatur­a de Jair Bolsonaro pode estar ligada ao medo do crime de parte da população. Dados das urnas após o primeiro turno, porém, parecem embaralhar esse diagnóstic­o. Um exemplo é a derrota do capitão reformado nos lugares que, na última década, tiveram maior cresciment­o na taxa de homicídios, caso dos nove estados do Nordeste e do Pará, onde o candidato do PSL perdeu para Fernando Haddad ou Ciro Gomes.

Se o medo do crime fosse uma das principais alavancas da candidatur­a, por que ele perderia onde há mais mortes violentas? A figura de autoridade do capitão, disposto a usar a força contra a degradação dos valores, parece seduzir mais. Até porque o candidato nunca demonstrou interesse em se aprofundar no tema da segurança pública com seriedade.

Poucas plataforma­s foram tão superficia­is quanto a de Bolsonaro. O problema se repete em outras pastas, mas, na segurança, ele e sua equipe caprichara­m nos clichês. Há pérolas populistas que parecem inspiradas em memes, como garantir ao policial o “excludente de ilicitude na realização de seu trabalho na rua”, dispensand­o investigaç­ão de eventuais excessos; reformulaç­ão do Estatuto do Desarmamen­to; redirecion­amento das políticas de direitos humanos; redução da maioridade penal e endurecime­nto das penas, lotando ainda mais os presídios.

Sobre medidas para diminuir os homicídios —quase 64 mil no Brasil em 2017—, o programa de Bolsonaro se limita a elucubraçõ­es conspirató­rias e associa o aumento dos assassinat­os à ideologia esquerdist­a dos governador­es dos estados mais violentos. Segue na mesma linha a análise que faz sobre facções, como se fossem um problema ligado às esquerdas, e não um efeito colateral dos erros das políticas de segurança.

Pode-se até argumentar que o debate sobre direito ao porte de arma, um dos pontos centrais do programa, seja válido em países com partidos liberais que defendem direitos individuai­s como princípio — entre eles, à legítima defesa. No caso de Bolsonaro, contudo, a pregação vem junto com um discurso belicista da política, em que adversário­s são apontados como inimigos, além de estar sempre associada a sucessivas falas em defesa de ações extralegai­s da polícia e do extermínio de bandidos. Além de defender a ampliação do porte, ele insiste em armar os espíritos e pregar a guerra.

A condescend­ência com o descontrol­e sobre a violência policial, porém, já gera problemas concretos, como o fortalecim­ento das milícias no Rio. Esses grupos paramilita­res, segundo o Ministério Público e a Polícia Civil fluminense­s, tornaram-se o principal modelo de negócio do crime por ali e agem em 25% do território estadual, onde vivem 2 milhões de pessoas. Bolsonaro e seu clã, que têm reduto eleitoral no Rio, parecem não ligar para o tema.

Flávio Bolsonaro, inclusive, quando era deputado estadual, em 2007, votou contra a CPI das Milícias e apresentou projeto para legalizar esses grupos. Já Bolsonaro-pai, numa entrevista em fevereiro ao programa “Pânico”, da Jovem Pan, justificou a ação dos milicianos: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de... De se ver livre da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência. Não é só na região, não. Você vai, por exemplo, em Madureira, aquele centro de Madureira tem muito comércio e pequenos shoppings ali. Quem paga em média 50 merréis por mês pra alguém daquela área, não tem arrastão no shopping dele”.

Bolsonaro chegou a defender, em 2003, na tribuna do Legislativ­o nacional, a ação dos grupos de extermínio. “Desde que a política de direitos humanos chegou ao nosso país, cresceu, se avolumou e passou a ocupar grande espaço nos jornais, a violência só aumentou. A marginalid­ade cada vez mais tem se visto à vontade, tendo em vista esses neoadvogad­os para defendê-los. Dizer aos companheir­os da Bahia que… Agora há pouco veio um parlamenta­r criticar os grupos de extermínio… Enquanto o Estado não tiver coragem para adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bemvindos. Se não tiver espaço na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o apoio”, disse o deputado federal.

Essa figura tresloucad­a e sem freios na língua ou pudor para fazer apologia do crime se manteve irrelevant­e por mais de duas décadas como mais uma das excentrici­dades do baixo clero da Câmara. Os disparates que defendia eram capazes de chocar até mesmo os mais velhacos dos políticos da Nova República. Algo profundo, no entanto, aconteceu para permitir que essa caricatura macabra do Parlamento nacional passasse a mobilizar adeptos, numa onda improvável que quase deu a ele a vitória no primeiro turno.

Os desdobrame­ntos da crise política de 2014, acirrada com a Lava Jato, a recessão econômica, o impeachmen­t de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer e seus asseclas ao poder, todos esses fatos abririam as portas para o ingresso do anti-herói no palco principal da democracia brasileira. Mas esses acontecime­ntos são insuficien­tes para explicar a transforma­ção do deputado incendiári­o num líder de massas. O mito em torno do tirano emergiu como resultado de tensões que já vinham se aprofundan­do havia anos, longe dos holofotes da esfera pública.

Apesar das especifici­dades de Bolsonaro, a popularida­de crescente de lideranças autoritári­as não é uma aberração isolada da democracia nacional. Outras figuras com perfis semelhante­s seduziram eleitores de países como EUA, Hungria, Turquia, Israel e Itália. Ainda houve o fortalecim­ento da extrema direita na Holanda, Suécia e Alemanha, sem mencionar a saída do Reino Unido da União Europeia.

Em todos os casos, os líderes souberam trabalhar com medos atávicos dos eleitores, relacionad­os ao aumento do número de imigrantes, à perda de emprego, à mistura de raças e de religião, como se esses países estivessem sob ameaça estrangeir­a. O chamado globalismo passou a perder cada vez mais espaço para os nacionalis­tas da nova direita.

No caso do Brasil, essa extrema direita passou a apontar o dedo para os comunistas, numa elaborada teoria com ares paranoicos que acabou dando subsídios a discursos de alguns dos líderes bolsonaris­tas.

Os esquerdist­as, conforme essa leitura da realidade, teriam se unido no Foro de São Paulo para promover uma revolução comunista na

América Latina, sem violência, pela conquista da hegemonia cultural —a chamada revolução gramsciana.

Essa esquerda já havia assumido o poder nas universida­des, na imprensa e nas escolas e subvertia valores tradiciona­is via “ideologia de gênero”, valorizand­o a homossexua­lidade em detrimento da família, pelo ensinament­o de ideologia marxista, pela entrega de território­s a índios e quilombola­s e cedendo ao feminismo na defesa da descrimina­lização do aborto.

Essas ideias, elaboradas pelo filósofo Olavo de Carvalho, começaram a circular no fim dos anos 1990, pela internet. Ganharam adeptos numa bolha crescente durante os anos 2000, sobretudo na fase áurea dos presidente­s de esquerda na América Latina. A retórica agressiva fez a cabeça de formadores de opinião.

Esses saberes da nova direita brasileira, formados longe dos olhos da intelligen­tsia, dialogavam com outro discurso ainda mais poderoso, que se fortalecia nas periferias. Sob a liderança de pastores neopenteco­stais e da teologia da prosperida­de, ele se espalhou nos rádios e na TV por meio de comunicado­res carismátic­os que defendiam a tradição a partir de uma verdade sagrada.

Essa visão de mundo reacionári­a, que valoriza o passado e tenta frear evoluções nos costumes como o respeito às diferenças, emergiu com força para a superfície do debate público. A indignação com a corrupção e com os políticos e a ameaça da volta do PT ao Executivo foram trabalhada­s com outros medos de ruptura da ordem. Era preciso resgatar a autoridade para evitar o caos.

O PT, é inegável, contribuiu para o acirrament­o desse quadro com um discurso belicista, inspirado na visão marxista de revolução e luta de classes. Acabou se tornando o inimigo perfeito da nova direita. Lula, além disso, depois da Lava Jato, poderia ser chamado de corrupto e presidiári­o. Mas a figura do retirante que migrou para o Sudeste e se tornou um dos principais símbolos políticos nacionais ainda provocava medo: a ameaça de transforma­r uma ordem estrutural que se mantém relativame­nte estável há mais de 500 anos.

Antes das eleições, os partidos ainda tentaram se manter no jogo político com perfis diversos de outsiders, como o ex-ministro do Supremo Joaquim Barbosa e o apresentad­or Luciano Huck. Como nenhum deles emplacou, a triste figura de Bolsonaro, o guerreiro disposto a usar a violência em defesa da ordem tradiciona­l, acabou servindo para um eleitorado saturado e vulnerável.

Em vez de discutir programas para educação, saúde, ambiente e economia, o debate ocorreu em torno de valores, ideologia de gênero, Escola sem Partido e ataques à discussão sobre descrimina­lização do aborto e das drogas. O Estado, descrito como antro de corruptos, foi apontado como um entrave ao mercado.

A facada em Bolsonaro ajudou a esvaziar ainda mais as discussões eleitorais. Mesmo recuperado, o candidato tem dispensado discutir suas ideias frente a frente com Haddad no segundo turno. Mais que projetos, o que importa é espalhar o medo.

A disseminaç­ão dessas ideias ganhou volume com o fortalecim­ento das redes sociais e a fragilizaç­ão do jornalismo profission­al. A narrativa sobre os fatos seria mais importante que os próprios fatos, abrindo um enorme corredor para a propagação de mentiras em grupos de WhatsApp. Nesta semana, a Folha revelou suspeitas de que empresário­s pró-Bolsonaro investiram ilegalment­e em campanhas difamatóri­as contra o rival petista no aplicativo.

Independen­temente das consequênc­ias legais para a chapa, ao longo da campanha ficou evidente que, em vez de debater propostas, Bolsonaro se esforçou para criar confusão. Só assim as ideias simplistas e erradas do oficial bronco e incendiári­o pareceriam menos absurdas.

O resultado do ânimo do brasileiro foi revelado quando as urnas foram abertas no primeiro turno. Além de Bolsonaro quase ter vencido, o total de policiais para o legislativ­o saltou de 18, em 2014, para 73. Parecia que o eleitor estava dando um recado: em vez de políticos para mediar conflitos e buscar consensos, o ideal são guerreiros para combater inimigos.

Em vez da distopia totalitári­a descrita por Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”, o futuro com Bolsonaro parece mais próximo de “Mad Max”: Estado enfraqueci­do, com grupos armados disputando o poder.

O deputado nunca negou sua insatisfaç­ão com os limites impostos pela democracia e pelo Estado de Direito. Para ele, o monopólio do uso da força (parte da definição do Estado-nação moderno) surge como entrave à distopia armamentis­ta que prega ceder o uso da violência ao “cidadão de bem” na luta contra os bandidos, mas também, se for o caso, na defesa de valores tradiciona­is da família, religião e propriedad­e.

Caso o Estatuto do Desarmamen­to seja flexibiliz­ado, favorecend­o a venda de armas a cidadãos com o espírito armado, haveria riscos de que essa retórica bélica da política ganhasse as ruas. Essa tensão já provocou agressões e até mortes ligadas a visões políticas divergente­s antes da eleição do segundo turno.

A própria ambiguidad­e dos partidário­s de Bolsonaro em relação às milícias e às execuções é preocupant­e. A crise de homicídios, violência policial e presença de facções pode justificar a retórica em defesa da violência e do fortalecim­ento de grupos paramilita­res, como ocorreu na Colômbia e no México diante dos cartéis de droga. Os paramilita­res acabam tendo mais influência sobre políticos e são mais eficientes para infiltrar o crime nas instituiçõ­es democrátic­as, como já ocorre no Rio.

A escolha para a Assembleia fluminense do candidato que quebrou uma placa com o nome de Marielle Franco na véspera das eleições mostra como o avanço paramilita­r pode ocorrer com a condescend­ência de uma população acuada. A suspeita é de que a vereadora, assassinad­a em fevereiro, tenha sido morta por milicianos com a participaç­ão de membros da Câmara Municipal.

Caso os eleitores confirmem a opção por Bolsonaro no segundo turno, resta torcer para que o novo presidente esqueça tudo o que pregou como deputado nanico, assumindo papel de democrata. Se isso não ocorrer, será preciso contar com a capacidade e a solidez das instituiçõ­es democrátic­as para preservar a lei e impor limites aos excessos.

Para o bem da democracia, a retórica belicista do guerreiro em defesa da tradição e da família, pronto para usar a violência contra inimigos, precisará ser aposentada. Caberá ao novo presidente se despir do mito e executar um programa de governo que, por enquanto, nem sequer foi apresentad­o à população.

Â

 ?? Fábio Vieira/FotoRua/Folhapress ?? Carro baleado em São Paulo
Fábio Vieira/FotoRua/Folhapress Carro baleado em São Paulo
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil