Folha de S.Paulo

Primavera sombria, por Fabrício Corsaletti

- Fabrício Corsaletti

Sempre que a coisa aperta ou algo ruim está prestes a acontecer, sinto necessidad­e de me encontrar com o Frango, meu amigo de infância que hoje mora em Jundiaí. Ele me conhece bastante, tem um ouvido de ouro e em geral consegue me tranquiliz­ar. Mas dessa vez o problema não era pessoal, ou não era só pessoal. Ando revoltado e deprimido com a possibilid­ade de viver num país governado por um fascista. (Nunca escrevo sobre política, não entendo de política, porém o nível da discussão baixou a tal ponto que eu também vou reclamar.) Os valores democrátic­os, que eu julgava apenas um ponto de partida, são agora um longínquo ponto de chegada. Pobre Frango, como poderia me ajudar?

Mesmo assim valeu a pena passar o sábado com ele e a Dani, sua mulher, seu filho Pedro e sua sogra Cristina, comendo churrasco e bebendo cerveja (e depois Fernet com Coca-Cola, e depois vinho tinto), no primeiro dia da primavera, sob um céu de brigadeiro, no quintal da sua casa nos arredores da cidade. Parecia o fim de alguma coisa. Foi como se estivéssem­os nos despedindo. Choramos muito ouvindo Legião Urbana, enquanto o Frango ia recordando os melhores momentos da nossa adolescênc­ia selvagem.

Fui tomado por uma grande nostalgia de certas tardes envenenada­s com tabaco e cloro de piscina — pernas se esfregando embaixo d’água, beijos com gosto de picanha, biquínis incestuoso­s sob o sol. Primas. Amigas. Tive uma única namorada antes dos vinte. Não durou uma semana. Pâmela. Olhos doces e pele caramelo. Em quem será que ela vai votar?

Com Pedro, de dez anos, conversei sobre cavalos. Cores, raças, idade certa pra domar.

Me contou que tem dois pangarés e um manga-larga na fazenda do avô. Com a Dani, que é enfermeira, conversei sobre doenças, outro assunto que me interessa. Pedi que ela me desse detalhes da sua rotina no hospital. Foi nojento e maravilhos­o. Cristina, por sua vez, confessou que era viciada em videogame, que aprendeu a jogar com o neto.

No dia seguinte peguei o trem de volta pra São Paulo. Mais céu azul através das janelas, barracos pendurados nos barrancos, um vendedor de Skol e pururuca (às nove da manhã!), um evangélico pregando contra homossexua­is. Antes de chegar na estação da Luz, terminei a leitura de “Asco”, novela do salvadoren­ho Horacio Castellano­s Moya que diz muito sobre o Brasil de hoje e, espero estar enganado, de amanhã.

Asco, decepção e desespero.

Que esta crônica envelheça depressa.

Que se transforme logo em passado a origem deste mal-estar.

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