Na Presidência, Bolsonaro perderá imunidade que o livrou de processos
Eventuais declarações polêmicas no cargo de presidente podem motivar processo de impeachment, segundo a lei
Eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL) não desfrutará mais da prerrogativa da imunidade parlamentar que já o livrou de ao menos três processos por declarações como deputado federal.
Por outro lado, ele passará a dispor de outra proteção constitucional: só poderá ser processado com a autorização da Câmara dos Deputados.
Há quase dois anos foi arquivada representação no Conselho de Ética da Câmara que pedia a cassação de Bolsonaro por ter defendido em plenário a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
O deputado homenageou um dos principais símbolos da repressão na ditadura militar durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff.
Em 2011, teve fim parecido uma outra representação contra o capitão reformado do Exército, desta vez acusado de fazer declarações preconceituosas a respeito de negros e homossexuais.
Em setembro deste ano, a Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) também rejeitou uma denúncia contra Bolsonaro sob acusação de racismo, referente a um discurso no Clube Hebraica, no Rio, no qual afirmou que afrodescendentes “nem para procriador” servem mais.
Nos três casos, invocou-se a imunidade parlamentar.
De acordo com a Constituição, deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Aos membros do Executivo —prefeitos, governadores e presidente— a Constituição não prevê o mesmo direito.
“Deputados e senadores têm entre suas principais funções discursar. Não podem sofrer processo pelo que pronunciam na tribuna ou em situação externa referente ao exercício do mandato”, diz o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“Já o presidente da República é eleito para administrar o país, ser gestor dos negócios públicos. Serenidade e equilíbrio é o que se espera de um chefe do Executivo”, completa.
Como presidente, sem direito à imunidade, Bolsonaro poderia responder a dois processos distintos por eventuais declarações.
Falas discriminatórias referentes a raça, religião ou origem podem ser enquadradas como injúria racial (ofender a honra de um indivíduo) ou racismo (atinge uma coletividade indeterminada de pessoas), crimes de natureza comum previstos no Código Penal, explica Furtado Coêlho. Se eles forem cometidos no curso do mandato, o presidente será julgado pelo STF.
Após denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República, o prosseguimento da investigação dependerá do aval de dois terços da Câmara dos Deputados (342 votos).
Com a autorização dos deputados, o STF analisa se aceita a denúncia. Em caso positivo, o presidente ficará suspenso do cargo por até 180 dias. Após isso, volta à Presidência, mas o processo continua.
Se condenado, poderá ser preso na vigência do mandato.
Contando com expressiva base na Câmara, Michel Temer (MDB) conseguiu barrar duas denúncias, sob acusação de corrupção passiva e organização criminosa, na Câmara.
Declarações de um presidente da República também podem ser enquadradas como crimes de responsabilidade, infrações político-administrativas cometidas no desempenho do mandato.
Sem ter natureza criminal, essas infrações acarretam apenas sanção política: perda do cargo e inabilitação para o exercício de funções públicas por oito anos.
“O presidente, ao tomar posse, presta o compromisso de defender e cumprir a Constituição”, afirma o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto.
“Eventualmente o presidente pode se deslegitimar no plano do exercício, e aí sobrevém a incidência do impeachment. O presidente cujo estilo de governo se revelar incompatível com a Constituição leva o país a este terrível dilema, ou a Constituição ou o presidente. A resposta é que o presidente bata em retirada”, diz ele.
Crimes de responsabilidade, em resumo, são atos do presidente da República que atentem contra a Constituição e as instituições democráticas.
A advogada Vera Chemim, mestre em administração pública, entende que uma fala poderia ser classificada como um desses atos se ofender o livre exercício dos Poderes, como defender fechar o STF, ou provocar animosidade entre grupos sociais.
Uma hipotética defesa da ditadura militar ou de governos de exceção poderia motivar a abertura de um processo com base também na Lei 1.079, de 1950, conhecida como Lei do Impeachment.
“Esse último inciso, por ser amplo, pode incluir discursos que atentem contra os valores democráticos”, diz Chemim.
Bolsonaro já é réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) acusado de incitar o estupro, em um caso envolvendo a deputada Maria do Rosário (PT-RS).
Caso as ações não sejam julgadas até a posse, só poderão ser retomados depois que Bolsonaro deixar a Presidência.