Delegacia da Rocinha registra menos crimes que a do Leblon
Moradores e especialista apontam medo e desconfiança em comunicar a polícia
“A chegada desta delegacia é a chegada da cidadania, do Estado de direito. Não tenho dúvidas de que a comunidade e os delegados vão manter uma perfeita interlocução”, disse a então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Martha Rocha, em dezembro de 2013.
A ocasião era a inauguração da delegacia da Rocinha, hoje a única do estado que atende exclusivamente uma favela. Cinco anos depois, contrariando a promessa do ex-governador de Sérgio Cabral (MDB), hoje preso por corrupção, os números mostram que essa interlocução não está tão perfeita assim.
Desde sua abertura, a unidade vem registrando relativamente poucos crimes. Teve o segundo menor número absoluto de ocorrências da capital no período de 2014 a setembro deste ano (8.348) e a segunda menor taxa em 2017 (2.505 por 100 mil habitantes).
A delegacia de Ipanema e Leblon, bairros da zona sul com o metro quadrado mais caro do Brasil, tem índice três vezes maior (8.674 por 100 mil). A diferença é grande em crimes contra o patrimônio, que dependem da notificação, ao contrário dos homicídios e mortes por policiais.
Em quase cinco anos, por exemplo, a favela registrou 140 roubos de rua, contra mais de 4.000 em Ipanema e Leblon, cerca de 4.500 na região de Botafogo (zona sul) e mais de 6.000 na área da Barra da Tijuca (zona oeste).
Em número e taxa de ocorrências, a Rocinha só perde para outra unidade criada na mesma época, também como um símbolo do sucesso das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora): a delegacia do complexo de favelas do Alemão, na zona norte da cidade.
Essa última foi desativada em agosto pela intervenção federal —a segurança pública do RJ está sob comando da União desde fevereiro até dezembro deste ano—, que reconheceu que a baixa incidência de registros não justificava a manutenção do aparato estatal necessário.
A situação do Alemão é mais complicada. Enquanto a delegacia da Rocinha fica “no pé” da comunidade, a do complexo ficava ilhada no meio da favela, o que dificultava o acesso dos moradores por medo dos traficantes e facilitava ataques de criminosos aos policiais.
A subnotificação mostra que há impasses na relação entre moradores e polícia.
Para um deles que não quis se identificar por temer represálias, na favela, não se faz registro na delegacia quando se é roubado. A solução é continuar a trabalhar para comprar o bem levado mais uma vez.
Outro diz que ficaram abandonados por muito tempo e não vai ser de uma hora para outra que vão ter confiança na presença do estado.
“De um modo geral qualquer coisa que é do estado tem uma desconfiança, principalmente a polícia”, diz o defensor público Fabrício El-Jaick, que atua na Rocinha há três anos. “Aqui me chama atenção a baixa procura pela Defensoria, mais do que em outras favelas.”
Segundo um morador, há também a tendência de procurar o tráfico para resolver problemas com assaltos e furtos.
Segundo relatos, no entanto, esse “costume” diminuiu nos últimos anos com a tomada do controle pela facção criminosa Comando Vermelho, menos próxima dos moradores do que a facção que dominava a favela anteriormente, a Amigos dos Amigos (ADA).
Em setembro de 2017, a Rocinha viu surgir uma guerra pelo comando do tráfico entre os dois bandos, que culminou em operações diárias e no uso das Forças Armadas nas ruas do estado.
Carlos Abreu, delegado titular na Rocinha desde março, e Gabriel Ferrando, primeiro titular que passou três anos na unidade, discordam da ideia de que a delegacia registre poucas ocorrências e destacam sua atuação após essa crise.“Foram mais de 32 denunciados em dois meses. Nos últimos seis meses, também concluímos um inquérito de tráfico com mais de 22 indiciados”, diz Abreu. “As lideranças do tráfico foram presas graças ao trabalho da delegacia”, frisa Ferrando.
Eles ressaltam o trabalho contra a violência doméstica e sexual —a unidade tem um núcleo de atendimento à mulher—, e a Polícia Civil diz que a delegacia é a terceira no ranking de produtividade da capital entre as de porte médio.
Sobre uma crítica de dois moradores de que funcionários da delegacia certas vezes não registram ocorrências simples, dizendo que o sistema está fora do ar ou mandando a vítima ir para outra delegacia, Abreu recomenda que a pessoa ligue para a ouvidoria ou o procure.
Rafael Barcia, presidente do Sindelpol (sindicato dos delegados do RJ), vê a decisão de criar as delegacias da Rocinha e do Alemão em 2013 como política, e não técnica. “Para mim foi um erro estratégico, porque nunca se pensou na efetividade da delegacia, e sim na propaganda.”
A pesquisadora Silvia Ramos, da Universidade Cândido Mendes, diz que essas unidades vieram com a lógica de proximidade, de mostrar que a polícia não é só repressiva, o que era positivo. “O fechamento da delegacia do Alemão é um prenúncio de uma virada em que a polícia só fará combate de fora para dentro.”