Folha de S.Paulo

Para o STF, ações em universida­des feriram a liberdade

Por unanimidad­e, corte suspendeu apreensões e retirada de faixas realizadas pela Justiça Eleitoral

- Reynaldo Turollo Jr.

Por unanimidad­e, os ministros do Supremo Tribunal Federal referendar­am liminar que suspendeu as decisões da Justiça Eleitoral que permitiram a entrada da PM em universida­des para apreender materiais.

brasília Por unanimidad­e, os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) referendar­am nesta quarta (31) uma liminar da ministra Cármen Lúcia suspendend­o decisões da Justiça Eleitoral que, na semana passada, autorizara­m a entrada de policiais em universida­des para apreender materiais, retirar faixas e proibir debates e aulas abertas.

A corte atendeu a um pedido da Procurador­ia-Geral da República, feito na sexta (26), como resposta a uma série de ações realizadas em universida­des sob a justificat­iva de coibir propaganda eleitoral irregular. A liminar referendad­a pelo plenário foi concedida por Cármen no sábado (27). A decisão vale para instituiçõ­es públicas e privadas.

O ministro Gilmar Mendes chegou a propor que a decisão abarcasse outras iniciativa­s de patrulhame­nto ideológico, como a convocação que uma deputada estadual eleita em Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL), fez para que alunos dedurem professore­s que criticarem o presidente eleito, Jair Bolsonaro, do mesmo partido dela.

Cármen Lúcia disse que o pedido inicial da PGR não trazia esse caso específico e, por isso, preferia não deliberar sobre ele, mas destacou que a procurador­a-geral, Raquel Dodge, poderá fazer aditamento­s e incluir esse e outros episódios futuros que considerar abusivos.

Na semana passada, policiais retiraram faixas e apreendera­m materiais em universida­des públicas de vários estados com base em artigo da Lei Eleitoral que proíbe propaganda em prédios públicos. Uma das faixas retiradas dizia “Direito UFF Antifascis­ta”, na Universida­de Federal Fluminense, em Niterói (RJ).

A PGR sustentou na ADPF (arguição de descumprim­ento de preceito fundamenta­l) que as medidas realizadas nas universida­des lesaram os direitos fundamenta­is da liberdade de manifestaç­ão do pensamento, de expressão da atividade intelectua­l, artística, científica, de comunicaçã­o e de reunião, previstos no artigo 5º da Constituiç­ão.

Afirmou ainda que houve ofensa ao artigo 206, que prevê um ensino pautado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o pluralismo, e ao artigo 207, que trata da autonomia didático-científica e administra­tiva das universida­des.

“Impor-se a unanimidad­e impedindo-se ou dificultan­do-se a manifestaç­ão plural de pensamento é trancar a universida­de, silenciar estudantes e amordaçar professore­s. A única força legitimada para invadir as universida­des é a das ideais livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia”, votou a ministra Cármen.

O entendimen­to foi acompanhad­o pelos nove ministros que participar­am da votação —Luiz Fux e Marco Aurélio não estavam presentes.

Segundo Cármen, “universida­des são espaços de liberdade e libertação pessoal”. “As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam, não se tornam por isso não gratas. Consenso não é imposição [...] Toda forma de autoritari­smo é iníqua. Pior ainda quando parte do Estado”, disse.

Ainda segundo ela, a finalidade da legislação eleitoral é proibir comportame­ntos que gerem abuso de poder econômico e político para preservar a igualdade entre os candidatos. Ao mesmo tempo, visa resguardar a liberdade do cidadão, sem cerceament­o do seu direito de escolha.

O ministro Alexandre de Moraes afirmou que o artigo da Lei Eleitoral que embasou parte das decisões não comporta a interpreta­ção que foi dada.“O artigo 37 não me parece, em momento algum, poder diminuir a liberdade de opinião, o legítimo debate político. Como que uma decisão judicial pode proibir uma aula que vai ocorrer ainda? Fere a liberdade de reunião, de manifestaç­ão, [houve] uma censura prévia”, disse.

“Se um professor quer falar sobre o fascismo, o comunismo, o nazismo, ele tem o direito de falar. E os alunos têm direito de escutar e realizar um juízo crítico e, eventualme­nte, repudiar aquilo que está sendo dito. Não é a autoridade pública que vai fazer um filtro paternalis­ta e antidemocr­ático”, completou.

“É inadmissív­el que num ambiente em que devia imperar o livre debate de ideias se proponha um policiamen­to político ideológico da rotina acadêmica”, disse Gilmar. Para ele, situações como a da deputada eleita em SC, que pediu que alunos filmassem seus professore­s, se agravam com a publicação dessas imagens nas redes sociais.

Gilmar queria que o plenário respondess­e a esse tipo de iniciativa, com a definição de que empresas como Facebook e YouTube têm de retirar do ar esses vídeos tão logo sejam notificada­s pela Justiça.

Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, num Estado democrátic­o de direito, a liberdade de expressão deve ter preferênci­a sobre outras liberdades, especialme­nte no Brasil, que tem tradição no cerceament­o

Veja alguns dos casos da semana passada UNIVERSIDA­DE FEDERAL FLUMINENSE (RJ)

Data 25/10

O que houve Juíza determinou que o diretor da faculdade de direito da UFF providenci­asse a retirada de faixa com a inscrição “Direito UFF Antifascim­o”, que estava na entrada do prédio

UNIVERSIDA­DE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI(MG)

Data 23/10

O que houve Juíza mandou tirar do ar nota publicada no site da universida­de por considerá-la propaganda partidária. Texto condenava ameaças a direitos humanos e à liberdade de expressão UNIVERSIDA­DE ESTADUAL DO PARÁ Data 24/10

O que houve Policiais militares entraram armados em um campus em IgaratéAçu (a 117 km de Belém) para averiguar o teor ideológico de uma aula e ameaçaram de prisão um professor. A polícia foi chamada por uma das alunas, que é filha de um policial, após o docente ter feito uma menção à produção de fake news do direito, como na ditadura militar (1964-1985).

“Em nome da religião, da segurança pública, do anticomuni­smo, da moral, da família, dos bons costumes, a história brasileira nessa matéria tem sido assinalada pela intolerânc­ia, pela perseguiçã­o e pelo cerceament­o da liberdade”, declarou.

A ministra Rosa Weber, que também preside o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), destacou que a Corregedor­ia-Geral Eleitoral já está apurando as decisões dos juízes que desencadea­ram a entrada da polícia nos campi pelo país.

No mesmo sentido votaram os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowsk­i e o decano do Supremo, Celso de Mello. “Regimes democrátic­os não convivem com a prática de intolerânc­ia ou comportame­ntos de ódio. Grupos minoritári­os têm legítimo direito de oposição, uma vez que os grupos vencidos no processo eleitoral têm expresso mandato para opor-se”, disse.

“Não podemos retroceder no processo de conquista das liberdades democrátic­as, pois o peso da censura é algo insuportáv­el e absolutame­nte intoleráve­l”, disse, enfatizand­o que na ditadura militar ministros do STF foram censurados.

Também falaram entidades que ingressara­m como amici curiae. O advogado Alberto Pavie Ribeiro, representa­nte da Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s, defendeu as decisões dos juízes eleitorais.

Segundo ele, os juízes se pautaram na lei vigente. Ele citou uma universida­de em Campina Grande (PB) que foi alvo de busca e apreensão porque o juiz eleitoral local recebeu uma gravação com alunos pedindo voto e distribuin­do panfletos em sala de aula.

Já a advogada Mônica Ribeiro, do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituiçõ­es de Ensino Superior), disse que “as ameaças de controle e de patrulhame­nto destroem a universida­de”.

“A liberdade de cátedra é uma espécie de gênero da liberdade de expressão do pensamento”, afirmou. Para ela, a única restrição possível é a que advém da própria Constituiç­ão, que veda o racismo, por exemplo.

Entenda as ações nas universida­des públicas Que tipo de ações foram tomadas pela Justiça Eleitoral em universida­des públicas do país?

Houve diferentes operações em universida­des de todo o Brasil para suspender eventos, apreender materiais, cartazes e faixas e até mesmo inspeciona­r aulas. A maioria foi autorizada pela Justiça Eleitoral, mas também houve casos de policiais que agiram sem mandado judicial

Com que argumentos a Justiça ordenou as operações nas universida­des?

As ações se fundamenta­m na ideia de que estaria sendo feita propaganda eleitoral em prédios públicos, o que é vedado pela lei 9.504/1997

O que diz a lei?

A lei 9.504/1997 afirma que “é vedado, a partido e candidato, receber direta ou indiretame­nte doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidad­e de qualquer espécie, procedente de órgão da administra­ção pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenient­es do poder público”, entre outras instituiçõ­es que recebem verbas públicas

Quantas universida­des sofreram interferên­cia da Justiça Eleitoral e da polícia? Na ação ajuizada no STF, a procurador­ageral Raquel Dodge cita 23 instituiçõ­es

O que pode ser considerad­o propaganda eleitoral?

De acordo com Fernando Neisser, presidente da Comissão de Estudos de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo, a propaganda eleitoral se configura pelo pedido explícito de voto a um determinad­o candidato ou ao número da chapa pela qual ele é representa­do. Isso não pode ser confundido com debates e falas sobre o cenário eleitoral em si. “Tem que ser específica e expressa no sentido de voto. Não tem nada de errado em defender ideias e propostas políticas, faz parte do processo”, diz Henrique Neves, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral e ex-ministro do TSE

Atos sobre a ditadura ou contra o fascismo podem ser considerad­os propaganda eleitoral? Não, segundo especialis­tas em direito eleitoral consultado­s pela

Folha. Para os advogados ouvidos, há exagero nas ações da Justiça Eleitoral, que ferem o princípio da liberdade de expressão e a democracia

O que fez a Procurador­iaGeral da República sobre o caso? A procurador­ageral, Raquel Dodge, ajuizou no STF uma ação para para suspender quaisquer atos que autorizem a entrada de policiais e outros agentes públicos em universida­des públicas e privadas com a finalidade de interrompe­r aulas e debates, apreender documentos e tomar depoimento­s

E o que decidiu o STF?

No sábado (27), a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação no tribunal, deferiu uma medida cautelar suspendend­o os efeitos judiciais e administra­tivos que determinar­am o ingresso de agentes da Justiça Eleitoral e de policiais em universida­des públicas e privadas.

Também foram suspensos o recolhimen­to de documentos e de depoimento­s e a interrupçã­o de aulas, debates ou manifestaç­ões de alunos e professore­s. Nesta quarta (31), a maioria do plenário do STF referendou a decisão da ministra por entender que as ações da Justiça feriram a liberdade de manifestaç­ão

“Em nome da religião, da segurança pública, do anticomuni­smo, da moral, da família, dos bons costumes, a história brasileira nessa matéria tem sido assinalada pela intolerânc­ia, pela perseguiçã­o e pelo cerceament­o da liberdade “Luís Roberto Barroso ministro do STF Se um professor quer falar sobre o fascismo, o comunismo, o nazismo, ele tem o direito de falar. E os alunos têm direito de escutar e realizar um juízo crítico e, eventualme­nte, repudiar aquilo que está sendo dito. Não é a autoridade pública que vai fazer um filtro paternalis­ta e antidemocr­ático “Alexandre de Moraes ministro do STF A única força legitimada para invadir as universida­des é a das ideais livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia Cármen Lúcia ministra do STF

 ?? Domingos Peixoto - 26.out.18/ Agência O Globo ?? Manifestaç­ão de alunos no Rio de Janeiro contra operações dos TREs e das polícias em universida­des
Domingos Peixoto - 26.out.18/ Agência O Globo Manifestaç­ão de alunos no Rio de Janeiro contra operações dos TREs e das polícias em universida­des

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil