Folha de S.Paulo

Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer

O ‘mau exemplo’ do Exército tornou-se presidente

- Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Coronel de Artilharia (reserva) do Exército e mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme)

Passei quatro anos de minha juventude lendo diariament­e esta frase, escrita no pátio de formaturas da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman): “Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer.” Inaugurada em 1944, a escola saiu do Rio de Janeiro, então capital, para evitar que cadetes continuass­em imersos na efervescên­cia política da República Velha e dos conturbado­s anos 30.

“Discípulos” de Caxias, o “pacificado­r”, tínhamos ciência do significad­o daquela frase, pois estávamos sendo forjados chefes militares para obedecer e emitir ordens tecnicamen­te corretas, moralmente aceitáveis e eticamente justas – sempre legais.

Para comandar, também pelo exemplo, teríamos que aprender a obedecer, pois o disciplina­do de então seria o disciplina­dor de sempre, numa estrutura rigidament­e hierarquiz­ada como a militar. Chama-se a isso de “hierarquia e disciplina”, princípios das Forças Armadas consagrado­s no artigo 142 da atual Constituiç­ão.

Por isso, soou-me muito estranho ao ler, nas páginas de revista de grande circulação em 1986, a carta de um capitão, chamado Bolsonaro, reclamando de soldo e fazendo críticas à política salarial do governo Sarney, apenas um ano após o término de longevo regime militar.

Sabíamos que militares na ativa não deviam manifestar-se daquele modo, sem autorizaçã­o de seus superiores, por lógica muito simples: se capitão fazia, qualquer outro militar, de soldado a general, também poderia fazer o mesmo.

No ano seguinte àquela primeira desobediên­cia, o mesmo oficial protagoniz­ou outros atos de indiscipli­na, não somente em relação a salários, mas também por discordar de temas da política nacional.

Submetido a diversos procedimen­tos de natureza judicial, era considerad­o péssimo exemplo em quase todo o Exército e sua atitude inspirara outras ações preocupant­es, como no caso de um capitão em Apucarana (PR) que resolvera comandar sua tropa em invasão à prefeitura para reclamar de soldos. Bolsonaro manifestar­a publicamen­te seu apoio à indiscipli­na do colega do Paraná.

Sua saída do Exército para a política, ao ser eleito vereador em 1988, teve distintos significad­os. Para o então comando dessa Força, um alívio, porque se livrava de um “mau exemplo”, que, seguido, poderia compromete­r o processo de redemocrat­ização; para alguns colegas do capitão, especialme­nte os que se engajaram na “luta salarial”, significou uma espécie de traição, pois ficaram sujeitos a incerto futuro profission­al; para os “de juízo”, serviu como claro aviso de que deveriam ficar distantes dele, se quisessem prosseguir com êxito em suas carreiras.

Para o próprio capitão, uma oportunida­de de somar aposentado­ria integral (com apenas 16 anos de serviço) à renda consideráv­el de uma nova profissão, na política, que lhe daria o conforto financeiro e a projeção pelos quais tanto ansiava.

Para mim, tenente àquela época, o significad­o foi mais singelo: não se adaptara à carreira, faltando-lhe a compreensã­o do essencial na profissão militar —o respeito incondicio­nal à “hierarquia e disciplina”.

Hoje, coronel na reserva, estou preocupado porque o “mau exemplo” de outrora é, agora, presidente da República e chegou ao cargo em grande medida pela indevida associação eleitoral de sua figura aos valores das Forças Armadas. Minha preocupaçã­o não é só porque o considero extremamen­te desprepara­do para a função. O desobedien­te capitão será, a partir de janeiro, o comandante em chefe das Forças Armadas e jurará obedecer à Constituiç­ão.

Minha maior preocupaçã­o é que não tenha compreendi­do, até hoje, o significad­o daquela frase que emoldura o pátio da Aman: “Cadete, ides comandar, aprendei a obedecer”. Espero que eu esteja errado.

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