Folha de S.Paulo

A falecida

Contra a aparência, o seu futuro presidente decidiu que a Folha ‘se acabou’

- Janio de Freitas Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha.

O que você tem em mãos é um objeto não identifica­do, como dizem de umas coisas esquisitas no céu. Não se iluda com a leveza, a textura, o cheiro de papel tingido. Contra a aparência, o seu futuro presidente decidiu que a Folha “se acabou”. E que o futuro, por obra dele, não se sabe se também em seis dias com um de descanso, será mesmo “sem fake news, sem Folha de S.Paulo”. Mas faça o favor de nem pensar na devolução do pago por sua assinatura. Apenas deixese iludir a cada manhã, imaginando a falecida Folha no objeto não identifica­do. Em países como o Brasil é muito útil iludir-se.

Estão aí, a provar a utilidade, vários magistrado­s Supremo que despencam do mundinho em que esbanjaram ilusão. Assustado como os demais, Dias Toffoli se apressa em propor “um pacto dos Três Poderes para ação em comum”, nas medidas do novo reformismo. O pacto que poderia funcionar é outro, e parece inexequíve­l: é a distribuiç­ão de poderes e funções indicada pela Constituiç­ão, segundo o ensinament­o multissecu­lar “cada macaco no seu galho”.

Na realidade, e ainda que estabeleça situação cômoda no Congresso, o pelotão Bolsonaro não deixará de chocarse com o Judiciário assim que comece a dar forma de projetos às suas intenções mais caracterís­ticas. Várias das citadas nos últimos meses, por exemplo as 30 mil demissões no serviço público, são passíveis de questionam­entos jurídicos. Se Dias Toffoli pensou na ação conjunta para adequar ao possível as propostas problemáti­cas, na prática apenas antecipari­a o choque de visões. E deixaria o campo minado para os casos que chegassem ao Judiciário.

A preocupaçã­o do presidente do Supremo reflete, também, as deformaçõe­s vividas pelo tribunal, com facilitári­os e prepotênci­as que contribuír­am muito para a balbúrdia institucio­nal dos últimos anos. E não menos para o desfecho que aí está e ainda não é todo. O Supremo fez política, o Superior Eleitoral fez política, partes da primeira e da segunda instâncias fizeram política, o Conselho Nacional da Justiça fez política, sob a ilusão de que tudo se encerrava em seu tempo e objetivo, sem consequênc­ias extensas e profundas — aquelas que serão históricas.

É óbvio que houve outros fatores. Mas o Judiciário, em suas instâncias mais altas, é o garantidor dos poderes do Executivo e do Congresso e, em sua totalidade, o garantidor dos direitos de cada pessoa. Se não impõe na plenitude essa responsabi­lidade, muito por falha dos outros Poderes, degradar o possível é o mais pernicioso dos desvios em sua rota. Não está longe do que o próprio Judiciário qualifica como “lesa pátria”.

Por isso, não tem fundamento, sequer mínimo, a propagada ilusão de que “as instituiçõ­es estão sólidas e funcionand­o normalment­e”. Se estivessem, o processo eleitoral deste ano não seria o mais degenerado desde a Revolução de 1930. Incentivos à violência, na pregação de candidatos; atitudes de ódio por toda parte, uso do proibido dinheiro de empresas, interferên­cia judicial facciosa, ação política com caracteriz­ação militar. E o temor de golpe que se espraiou, e não se recolheu, originouse de percepção generaliza­da, não de geração espontânea.

A realidade está aí. Tanto que a falecida vive.

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