Folha de S.Paulo

Palavras importam e podem até matar

Presidente­s não deveriam soltar fogo pela boca

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Cerca de mil manifestan­tes se animaram a protestar contra o presidente Donald Trump quando ele visitou na terçafeira (30) a sinagoga Árvore da Vida na qual 11 pessoas foram assassinad­as por um fanático antissemit­a. Gritavam: “Palavras importam”.

Alusão óbvia ao fato de que a retórica de Trump, desde a campanha eleitoral e em seus quase dois anos de governo, intoxicou o ambiente nos Estados Unidos, o que, por sua vez, encorajou fanáticos ao ataque.

Intoxicaçã­o assim relatada no New York Times em reportagem de Peter Baker e Maggie Haberman no domingo (28): “A morte dos 11 fiéis em Pittsburgh reacendeu o debate a respeito dos sinais que Trump tem mandado, intenciona­lmente ou não, aos elementos mais radicais nas franjas da sociedade”.

No dia seguinte, era impression­ante o cardápio de opiniões a respeito, no mesmo jornal. Dois exemplos: “O banho de sangue na sinagoga Árvore da Vida é um sinal de que o ódio ao Outro [assim com maiúscula mesmo] está envenenand­o nossa vida pública”, escreveu Howard Fineman, jornalista-celebridad­e, hoje na rede NBC. Já o colunista do próprio New York Times Charles Blow dizia que “Trump flertou com os racistas e nazistas das profundeza­s, o que não deixou de ser notado, mais ainda por todos eles”.

Os trumpistas certamente dirão que essas sensações são coisas do New York Times, jornal que eles consideram “fake news”, seguindo a retórica tóxica do próprio presidente. Mas, na terça (30), saiu análise na mesma linha, partida de personagem e em publicação que não deveriam ter razões para fustigar Trump. A publicação é The Times of Israel, país que Trump defende à morte.

O personagem é ainda mais impression­ante: chama-se Abraham Foxman, sobreviveu ao Holocausto por ter sido protegido por sua babá católica, e passou sua vida na América combatendo o antissemit­ismo, especialme­nte na condição de diretor até 2015 da ADL (Liga Antidifama­ção, nas iniciais em inglês). Tratase da mais ativa agrupação de vigilância contra ataques aos judeus e ao judaísmo.

Deveria, pois, estar agradecido a Trump por visitar sinagoga que havia sido a mais recente vítima do ódio aos judeus.

No entanto, Foxman diz que o ataque em Pittsburgh é uma consequênc­ia imprevista da ideologia do presidente, porque ela “dá armas ao fanatismo e encoraja extremista­s como Robert Bowers, o matador de Pittsburgh”. Em seguida, Foxman diz o que ele gostaria de ouvir de Trump em sua visita à sinagoga:

“Que a linguagem de dividir e conquistar minará o que nós somos —nossa segurança, nossa democracia, nossa liberdade. (...) Que entendo que palavras involuntár­ias podem ter consequênc­ias muito perigosas —como aconteceu em Pittsburgh. Que pessoas usam tais palavras e abusam delas, e agora eu sei que elas podem ter consequênc­ias”.

Se se trocar Trump por Jair Bolsonaro, poder-se-ia dizer a mesmíssima coisa. Com uma diferença importante, a favor de Bolsonaro: até agora, a retórica tóxica do presidente eleito provocou, sim, um punhado de cenas de intolerânc­ia e algumas agressões verbais, mas ninguém morreu. Ainda é tempo, pois, de esperar de Bolsonaro as palavras que Foxman gostaria de ouvir de Trump.

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