Folha de S.Paulo

Comunista é a vovozinha

É natural que a língua mude, mas não deve ceder à desinforma­ção histérica

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Eu estava lá. Cinco anos atrás, a bonita cidade baiana de Cachoeira, a 116 quilômetro­s de Salvador, recebeu um grupo eclético de escritores para sua festa literária, a Flica, que há pouco mais de um mês chegou à oitava edição. Mas o de 2013 seria um evento diferente.

Na tarde de 26 de outubro daquele ano, um sábado, acompanháv­amos o debate entre Demétrio Magnoli, colunista desta Folha, e a cientista social Maria Hilda Baqueiro Paraíso, quando alguém gritou “Fascista!” e vieram os índios.

Bem, foi assim que pareceu a princípio. Vistos de perto, os índios se revelaram teatrais: os jovens negros seminus, cobertos de tinta e adereços, eram militantes de esquerda apoiados por uma claque que, munida de faixas, gritava: “Fascista! Racista!”

Conseguira­m matar o debate. A direção alegou não ter como garantir a segurança dos convidados e cancelou a mesa. Aproveitou para suspender também a conversa da noite entre Luiz Felipe Pondé, outro colunista da Folha, e o sociólogo francês JeanClaude Kaufmann.

O ato político grotesco que aleijou a Flica 2013 me veio à memória outro dia, quando lia uma das colunas em que Magnoli assumiu posição firme contra os riscos que Bolsonaro, com sua retórica autoritári­a, representa para o país.

Com um sorriso que só não virou gargalhada porque o momento requer compostura, me ocorreu a ironia da rasteira históricas­ofridapora­quelespasp­alhos pintados de Cachoeira.

Claro que eles estavam errados desde sempre. Como escrevi na ocasião, “se havia pessoas próximas do fascismo ali, eram aquelas que num ‘fascio’, grupo, ajuntament­o, agiam com violência e à margem da legalidade para calar seus adversário­s. Fascistas eram os que gritavam ‘fascista!’”.

No entanto, faltava o último ato dessa tragicoméd­ia. O falso fascista que os falsos índios impediram de falar na Bahia, por discordare­m de sua visão liberal, hoje é seu aliado contra uma nova força política que, esta sim, exibe diversos traços fascistoid­es na bandeira.

Magnoli ficou no mesmo lugar. O mundo à sua volta é que se reconfigur­ou de modo radical: ao sabor da gangorra do poder, a intolerânc­ia que vinha da esquerda passou a vir, inclusive por reação newtoniana, da direita.

Na sua encarnação direitista, tem tons bem mais escuros. A retórica da morte ao discurso divergente agora inclui a morte propriamen­te dita de quem é diferente. No lugar da borduna cenográfic­a, corremos o risco de ver alcateias de armas de fogo engatilhad­as vagando pelas ruas.

Diferença de tons à parte, nenhuma explicação para este Brasil sombrio de 2018 será completa sem a Flica 2013. A incapacida­de de reconhecer no adversário político o direito à dignidade gerava fascistas fantasmagó­ricos. Hoje gera multidões de comunistas de araque.

Num caso de tumorizaçã­o semântica semelhante ao de seu antípoda “fascista”, “comunista” é hoje um insulto-ônibus paranoico e boçal. Abarca de liberais a esquerdist­as, passando por qualquer um que defenda a liberdade de imprensa, o meio ambiente, o estado laico e o direito que têm os adultos de fazer sexo consensual com outros adultos à sua escolha.

Sim, eu sei: a língua nunca para, as palavras mudam. Só que às vezes mudam no sentido da desinforma­ção e do diálogo de surdos. Nessas horas, recalibrar a linguagem para purgá-la de maluquice e histeria já não é suficiente, mas será sempre imprescind­ível. Comunista é a vovozinha.

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